domingo, 4 de outubro de 2015

SIGNO e IDEOLOGIA

Signo e ideologia
A consciência da importância de estudar a natureza do signo para
reconhecer os tipos de discursos levou Mikhail Bakhtin a formular um dos mais
férteis pensamentos sobre o assunto.
Em síntese, fala-nos o teórico soviético em seu Marxismo e filosofia da
linguagem que é impensável afastarmos do estudo das ideologias o estudo dos
signos, e que a questão do signo se prolonga na questão das ideologias. Há entre
ambas uma relação de dependência tal que nos levaria a crer que só é possível o
estudo dos valores e idéias contidos nos discursos atentando para a natureza dos
signos que os constroem. Assim sendo, os recursos retóricos que entram na
organização de um texto (ver parte 1 deste livro) não seriam meros recursos
“formais”, jogos visando “embelezar” a frase; ao contrário, o modo de dispor o
signo, a escolha de um ou outro recurso lingüístico, reve laria múltiplos
comprometimentos de cunho ideológico. Mas, como ocorreria a relação entre
signo e ideologia? Um produto ideológico faz parte de uma realidade (natural ou
social) como todo corpo físico, instrumento de produção ou produto de
consumo; mas, ao contrário destes, ele também reflete e refrata uma outra
realidade que lhe é exterior. Tudo que é ideológico possui um significado e
remete a algo situado fora de si mesmo. Em outros termos, tudo que é ideológico
é um signo. “Sem signos não existe ideologia.”*
Vejamos o seguinte exemplo: Um martelo outra função não possui,
enquanto instrumento de trabalho, senão o de ser utilizado no processo
produtivo. Vale dizer, não extraímos dele nenhum outro significado a não ser o
de auxiliar-nos na afixação de pregos, na quebradura de pedras etc. Contudo, o
mesmo instrumento posto em outra situação, num contexto em que passe a
produzir idéias ou valores que estão situados fora de si mesmo, refletindo e
refratando outra realidade, será convertido em signo.
O martelo e a foice que existiam na bandeira da ex-URSS produziam a
idéia de que o Estado Soviético era construído pela aliança dos trabalhadores
urbanos com os rurais. Assim, a bandeira dizia que a união dos operários com os
camponeses tornava possível a existência da União das Repúblicas Socialistas
Soviéticas.
De instrumentos de trabalho que eram, o martelo e a foice transformaramse
em signos, isto é, ganharam dimensão ideológica. A ideologia transitou
através dos signos. A idéia final que a bandeira da ex-URSS desejava
persuasivamente produzir era a do Estado Soviético sendo determinado pelos
interesses dos trabalhadores. Note-se que os signos deram à bandeira a
possibilidade de afirmar que, sendo ela a expressão maior da nacionalidade e
estando nela as representações dos operários (o martelo) e dos camponeses (a
foice), tomam-se estas duas as forças sociais mais importantes da nação.
Há uma enorme série de exemplos de instrumentos, ou até mesmo
produtos de consumo, que perderam seu sentido inicial para se transformarem
em signos: ou seja, passaram a funcionar como veículos de transmissão de
* BAKTHIN, Mikhail. Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo, Hucitec. 1979. p.17.
ideologias. O pão e o vinho para os cristãos, a balança para a justiça, a maçã
para o pecado, a pomba para a paz etc. É possível, contudo, em qualquer desses
exemplos, saber até onde existe instrumento, ou produto de consumo, e onde
começa o signo; numa palavra, estamos diante da passagem do plano denotativo
para o plano conotativo. O pão, enquanto tal, denota um alimento; porém, no
contexto do rito religioso, passa a conotar o corpo de Cristo. Para aduzirmos
mais uma observação às considerações realizadas até aqui, convém lembrar que
o signo nasce e se desenvolve em contato com as organizações sociais. O signo
só pode ser pensado socialmente, contextualmente. Sendo assim, cria-se uma
relação estreita entre a formação da consciência individual e o universo dos
signos. Só podemos pensar a formação da consciência dentro de um prisma
concreto, derivado, do embate entre os signos.
Se as palavras, por exemplo, nascem neutras, mais ou menos como estão
em estado de dicionário, ao se contextualizarem, passam a expandir valores,
conceitos, pré-conceitos. Nós iremos viver e aprender em contato com outros
homens, mediados pelas palavras, que irão nos informar e formar. As palavras
serão por nós absorvidas, transformadas e reproduzidas, criando um circuito de
formação e reformulação de nossas consciências. Não podemos imaginar, como
querem certas filosofias, que a consciência seja uma abstração, uma projeção do
“mundo das idéias”. Ao contrário, pode-se verificar pelo que foi dito até aqui,
que a consciência se forma e se expressa concretamente, materialmente, através
do universo dos signos. Pode-se, portanto, “ler” a consciência dos homens
através do conjunto de signos que a expressa. As palavras, no contexto,
perdem sua neutralidade e passam a indicar aquilo a que chamamos
propriamente de ideologias. Numa síntese: o signo forma a consciência que por
seu turno se expressa ideologicamente.
Com essas observações, é fácil deduzir que o modo de conduzir o signo
será de vital importância para a compreensão dos modos de se produzir a
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persuasão. Vejamos um exemplo:
A rodovia Castelo Branco está próxima.
A primeira impressão é a de que a função do nome Castelo Branco é
apenas o de indicar a existência de uma determinada rodovia. Se assim fosse,
estaríamos diante de um nível denotativo da linguagem cujo raio de ação
terminaria no plano meramente indicativo. Porém, se lembrarmos que aquela
rodovia poderia ter recebido um outro nome, visto que a possibilidade de
homenagear é quase infinita, teríamos que:
a) existiu uma escolha contextualizadora, ou seja, elegeu-se o nome de
Castelo Branco e não outro qualquer;
b) tal escolha foi pautada pela relação da personagem com certos fatos da
vida brasileira recente;
c) o homenageado representou (pelo menos dentro da ótica dos que
escolheram o nome da rodovia) um homem que realizou algum grande feito
nacional, no caso específico ter coordenado o golpe de 1964, portanto, merece
ser lembrado e louvado;
d) o nome de Castelo Branco (um grande homem para designar uma grande
rodovia, afinal foi a primeira auto-estrada brasileira!) colabora no sentido de
ajudar a perpetuar os valores ideológicos daqueles que depuseram o legítimo
governo de João Goulart. Castelo Branco seria a síntese de uma glorificação:
nele o encontro de um anônimo exército de golpistas.
Como se pode notar, até as placas de ruas acabam servindo como veículos
difusores de persuasão. Não fosse assim, episódios cômicos e trágicos deixariam
de ter sido associados às ruas e aos nomes que as designam. No primeiro caso, é
só recordarmos aquele exaltado “revolucionário” de 1964 que desejava trocar o
nome da rua Cuba, em São Paulo, visto suas nítidas conotações subversivas. No
segundo caso, os estudantes da Faculdade de Filosofia da USP, querendo mudar
o nome da rua onde funcionava a escola, a Maria Antônia, para Edson Luís
Souto, jovem estudante que havia sido morto no Rio de Janeiro pela repressão
política desencadeada no final de 1968.
É possível deduzir, portanto, que as placas podem ser indicativas, mas não
só, dado que conotam idéias e valores que estão embutidos em sua aparente
função exclusivamente designativa. Se, como foi afirmado anteriormente, a
palavra nasce neutra (em estado de dicionário), ao se contextualizar, ela passa a
expressar valores e idéias, transitando ideologias, cumprindo um amplo espectro
de funções persuasivas às quais não faltam a normatividade e o caráter
pedagógico.

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