domingo, 4 de outubro de 2015

NO DISCURSO RELIGIOSO

Uma das formações discursivas mais explicitamente persuasivas é a
religiosa: aqui o paroxismo autoritário chega a tal grau de requinte que o eu
enunciador não pode ser questionado, visto ou analisado; é ao mesmo tempo o
tudo e o nada. A voz de Deus plasmará todas as outras vozes, inclusive a
daquele que fala em seu nome: o pastor. Estamos diante de um discurso de
autoria sabida, porém não-determinada, visto que a fala do pastor se constrói
como verdade não sua, mas do outro, aquele que, por ser considerado
determinação de todas as coisas, engloba todas as falas do rebanho.
Nesse sentido, o discurso religioso realiza uma tarefa sul generis enquanto
mecanismo de comunicação, pois, se os demais discursos autoritáriospersuasivos
podem vir a revelar a voz do sujeito falante, nele resta apenas a
noção de dogma. Não deixa de ser uma situação curiosa estar diante da mais
visível forma de persuasão e do mais invisível eu persuasivo! Deus não fala,
dado ser uma realidade imaterial quem fala em seu nome não é dono do
discurso: o pastor e apenas veículo, porta-voz, no máximo um “interpretador” da
palavra do Senhor.
Num feliz achado, Eni Orlandi designa esse processo o nome de
“ilusão da reversibilidade”. Ou seja, enquanto no discurso dos homens se abre a
possibilidade de ocorrer uma reversão no processo comunicativo (emissores e
receptores podem interagir), no discurso religioso tal procedimento se torna
impossível. Interagir com quem? Com Deus? Sabemos, no entanto, que isso é
impossível, porém ficamos com a “ilusão” do reversível, dado que os
representantes de Deus na Terra parecem falar ele. Podemos interagir na melhor
das hipóteses, com entidades de segundo grau, os pastores, por exemplo, que,
não sendo donos da fala (eles só reproduzem ou interpretam), dão a impressão
de serem sujeitos do discurso.
A título de exemplificação, vejamos um dos mais conhecidos textos
religiosos, o Credo:
1 Creio em Deus Pai todo-poderoso,
2 criador do Céu e da Terra;
3 e em Jesus Cristo, seu único Filho, nosso Senhor;
4 que foi concebido pelo poder do Espírito Santo;
5 nasceu da Virgem Maria,
6 padeceu sob Pôncio Pilatos,
7 foi crucificado, morto e sepultado;
8 desceu à mansão dos mortos;
9 ressuscitou ao terceiro dia;
10 subiu aos Céus,
11 está sentado à direita de Deus Pai todo-poderoso,
12 donde há de vir a julgar os vivos e os mortos;
13 creio no Espírito Santo,
14 na santa Igreja católica,
15 na comunhão dos santos,
16 na remissão dos pecados,
17 na ressurreição da carne,
18 na vida eterna.
19 Amém.
1. O Credo, ou Profissão de Fé, nos coloca frente à relação entre o homem, a fé
e o dogma. O texto despren de-se de um plano meramente terreno, material
(humano, portanto), para uma dimensão de mistério e espiritualidade (do Senhor
Deus, da remissão, da salvação).
2. Tal passagem é matizada pela própria estrutura textual; o modo de organizar a
seqüência narrativa vai do eu oculto (creio) para vida eterna. Observando
melhor essa estrutura é possível identificar os passos do discurso clássicoaristotélico,
conforme já foi mostrado no primeiro capítulo deste livro. Dos
versos 1 a 4, encontra-se o exórdio; do 5 ao 12, a narração (com as provas); do
13 ao 19, a peroração (conclusão).
Exórdio
Aqui se apresenta a situação do eu, que sintaticamente está elidido, numa
posição de inferioridade e dependência perante o Senhor. Esse é o todopoderoso
capaz de criar um filho para ser o nosso Senhor. Senhor (seniore) nos
remete a uma realidade de posse feudal. medievalizante: é o amo, o dono, aquele
que domina e cujo poder é inquestionável. O exórdio deixa clara a falta de
igualdade entre o eu que crê (condição básica para a salvação) e Deus, cujo
único filho será o nosso Senhor.
A figura de linguagem que domina esta parte do discurso é a hipérbole. A
grandiosidade do todo- poderoso, capaz de criar céus e terras, só se compara a
pequenez do homem condenado a crer para se salvar. Por detrás da opacidade do
dogma e do mistério, lemos, através da hipérbole, a transparência de um
santificado jogo de poder e dominação.
Narração
A narração se encarrega de explicar e provar o nascimento, a vida e a morte
de Cristo. O longo acúmulo de verbos agiliza a leitura, dando ao texto um
incrível movimento interno. O que se coloca em primeiro plano é a morte e não
a vida, dado que esta é apenas o lugar para o exercício da capacidade de
provação do ser. A vida é a passagem, o locus purgativo, o teste para o
amadurecimento do espírito. A morte é o desfecho glorioso, circunstância
necessária para ganhar o reino do Céu, para se entregar à vida eterna. O Credo
ganha, aqui, dupla dimensão: dramática, visto contar a via crucis daquele que
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veio para nos salvar; e punitiva porque Ele estará pronto para nos julgar. Diante
de tal ameaça, o mecanismo persuasivo do discurso se reforça, pois sobre as
nossas cabeças pende a espada de uma justiça cujo executor não nos permite
qualquer tipo de interpelação.
A figura dominante agora é a antítese. Há um jogo entre morrer e ressuscitar.
Colocando em termos do homem, seria a tensão entre os apelos para uma vida
que priorizasse o espírito, dado que tudo prioriza a matéria. Morrer é um meio
para viver a felicidade eterna. Graças à crença e à fé, a morte se transforma em
vida.
Peroração
A conclusão só poderia retomar o verbo crer, pois aí está a condição básica
para a salvação. É em torno desse núcleo verbal que tudo se organiza: ele é
expansão e síntese dos sentidos.
A conclusão serve para fixar a situação do homem e o que dele deseja
Deus. Para o Senhor, o homem está em falta, em queda, ou seja, o sujeito não é,
mas pode vir a ser, superando-se e conseguindo, através da fé, encontrar a
salvação. É possível caracterizar o discurso religioso como dogmático, dado essa
sua natureza de inquestionabilidade.
3. Há uma série de outros mecanismos que acentuam a persuasão no discurso
religioso:
• uso do modo imperativo, o que revela a idéia de coisa pronta, acabada;
• o vocativo subjacente (creio), que afirma o chamamento ao sujeito;
• a função emotiva (afinal eu devo acreditar, ter fé. O problema da salvação está
comigo, o Senhor é o exemplo a ser seguido);
• o uso de metáforas que acentuam o ciframento do discurso religioso: a mansão
dos mortos e o ressuscitamento de todos só criam um jogo simbólico acerca do
inusitado do dogma;
• uso intenso de parábolas e da paráfrase; de um lado, a evocação alegórica, e, de
outro, a presença do texto bíblico;
• uso de estereótipos e chavões que possuem a força daquilo que Umberto Eco
chama de sintagmas cristalizados: “Oh! Senhor”, “todo-poderoso”, “criador”,
“nosso Senhor” etc.

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