domingo, 4 de outubro de 2015

O DISCURSO AUTORIZADO

Em um artigo* muito instigante, Marilena Chauí desenvolveu o conceito
de discurso competente. Vamos examiná-lo mais de perto, visto sua utilidade no
sentido de ajudar a clarear pontos que foram levantados até agora.
Como é sabido, vivemos em uma sociedade que premia as competências,
no campo profissional, intelectual, emocional, esportivo etc. Ao limbo são
condenados aqueles que estão “do lado” da incompetência, porque não
conseguem subir na vida, ou são instáveis emocionalmente, desgarrados da
família, maus alunos, repetentes nos exames vestibulares, inseguros nas tomadas
de decisões. Se olharmos a questão por esse ângulo, veremos que o leque dos
* CHAUÍ, Marilena. O discurso competente. In: - Cultura e democracia; o discurso
competente e outras falas. São Paulo. Moderna, 1981.
fracassados é enorme; os vitoriosos cabem nos pequenos círculos gerenciais.
O parâmetro que irá atribuir medalhas honoríficas a uns e adjetivos pouco
nobres a outros é sempre o da eficiência. Mede-se o sujeito por aquilo que
produzirá, quer ao nível material - os negócios realizados, os imóveis
adquiridos, até as peças que fabrica -, quer ao nível espiritual - a agudeza com
que emite opiniões, os livros que escreve, a harmonia emocional que consegue
estabelecer, a capacidade com que convence auditórios inteiros.
O mito da eficiência costuma desconsiderar as naturezas e finalidades dos
bens produzidos. Deus e o diabo podem diferenciar-se na Terra do Sol, mas, no
que dz respeito à organização produtiva, eles se misturam. Não se pergunta para
que, para onde, para quem os bens se voltam. Alguém ganhou, alguém perdeu,
afirmaram-se individualidades, foram os seres brutalizados, são perguntas
improcedentes para o caso. Assim sendo, se, por exemplo, no interior do sistema
tecno-burocrático-militar, um pesquisador de física atômica consegue descobrir
uma partícula com maior poder de destruição do que as já existentes, então a ele
está assegurado o galhardão da competência, pouco importando a natureza ética
de tal descoberta: a glória do cientista virá, ainda que pela porta do inferno. Da
mesma forma, o policial agraciado com uma nova patente na polícia por haver
desvendado um caso obscuro. E verdade que ele fez uso de várias formas de
violência física e psicológica contra os suspeitos; mas o que está em causa aqui
não é perguntar acerca da justeza de uma forma de ação e sim reconhecer a
eficiência da polícia, conquanto se tenha comprometido os resquícios de
humanidade de torturados e torturadores.
É possível objetar que o biólogo que ajudou a encontrar a cura para o
câncer, contribuindo, portanto, para extirpar um mal que ataca a humanidade,
revelou, felizmente, eficácia e competência. O problema não está, obviamente,
no fato da eficácia e da competência, mas na sua natureza e no uso alienado que
dela se faz. Ao diluir tudo num plano meramente concorrencial e triunfalista, as
instituições impedem que se façam perguntas, que se indague das naturezas das
competências. E a quem cabe o papel de uniformizar interesses contraditórios,
escamoteando e mascarando as diferenças, impedindo que a sociedade
reconheça o profundo antagonismo existente entre a competência do físico que
pesquisou a nova particula atômica e a do biólogo que descobriu a cura do
câncer?
A ponte por onde transita a mistificação da competência é a palavra, é o
discurso burocrático-institucional com seu aparente ar de neutralidade e sua
validação assegurada pela cientificidade. Afinal, quem afirma é o doutor, o
padre, o professor, o economista, o cientista etc.! Isso ajuda a perpetuar as
relações de dominação entre os que falam a e pela instituição e os que são por
ela falados. Os segundos, sem a devida competência, ficam entregues a uma
espécie de marginalidade discursiva: um reino do silêncio, um mundo de vozes
que não são ouvidas.
O discurso autoritário e persuasivamente desejoso de aplainar as
diferenças, fazendo com que as verdades de uma instituição sejam expressão da
verdade de todos, e assim colocado por Marilena Chauí: “O discurso competente
confunde-se, pois, com a linguagem institucionalmente permitida ou autorizada,
isto é, com um discurso no qual os interlocutores já foram previamente
reconhecidos como tendo o direito de falar e ouvir...”*
E lembra a autora que o discurso burguês sofreu algumas transformações.
Antes o seu domínio passava pelo aspecto legislador, ético e pedagógico. Ou
seja, as idéias enunciadas eram capazes de normatizar valores e ensinar. Dizia-se
acerca do certo e do errado, do que era justo ou injusto, normal e anormal.
Existia, portanto, o desejo de se guiar e ensinar. Certas instituições como Pátria,
Família, Escola, serviam de referência básica às pessoas. O professor, o pai, o
governante, eram figuras legitimadoras de situações. Os textos, e no caso do
Brasil se pode ler tal visão através dos escritos pedagógicos de Olavo Bilac, de
Rui Barbosa, insistiam nas orações aos moços, nos decálogos do bom
comportamento, na ritualização da tradição e dos bons costumes.
Conquanto o discurso burguês não tenha perdido as particularidades
acima colocadas, ganhou nova cara: “Tornou-se discurso neutro da
cientificidade e do conhecimento”*
Se é neutro, ninguém o produz; se científico, ninguém o questiona. Quem
fala é o Ministério da Fazenda, através do seu corpo técnico; a Sociedade
Médica através de seus doutos membros; a grande corporação multinacional
através de seus executivos etc. Autorizado pelas instituições, o discurso se
impõe aos homens determinando-lhes uma série de condutas pessoais.
Os recursos retóricos se encarregam de dotar os discursos de mecanismos
persuasivos: o eufemismo, a hipérbole, os raciocínios tautológicos, a metáfora
cativante permitem que projetos de dominação de que muitas vezes não
suspeitamos, possam esconder-se por detrás dos inocentes signos verbais.
A palavra, o discurso e o poder se contemplam de modo narcisista; cabenos
tentar jogar uma pedra na lâmina de água.


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