Corno vimos, pela própria natureza do estado grego, era imperativo para
certas camadas sociais dominar as regras e normas da boa argumentação. O
exercício do poder, via palavra, era ao mesmo tempo uma ciência e uma arte,
louvado como instância de extrema sabedoria; portanto não causa estranheza
que surgissem aí as primeiras sistematizações e reflexões acerca da linguagem.
Os pensadores gregos de Sócrates a Platão escreveram sobre o assunto, porém é
com Aristóteles que o discurso será dissecado em sua estrutura e funcionamento.
O estagirita (384-322 a.C.) deu à luz um livro que permanece até hoje
como um dos manuais clássicos para quem deseja estudar certas questões
vinculadas aos processos compositivos dos textos: Arte retórica. A obra pode
* Dicionário das Ciências da Linguagem. Lisboa, D. Quixote, 1976. p.99
ser considerada uma espécie de síntese das visões que se acumulavam em torno
dos estudos retóricos, assim como um guia dos modos de se fazer o texto
persuasivo.
A Arte retórica é composta dos livros I, II, III, onde se podem ler, trazido
para a linguagem de hoje, elementos de gramática, lógica, filosofia da
linguagem e estilística, para ficarmos em alguns dos temas que nos dizem
respeito.
A título de nos aproximarmos um pouco mais da estrutura de Arte
retórica, convém observar o roteiro fornecido por Jean Voilquin e Jean Capelle:
“O livro I contém quinze capítulos. Após ter mostrado, nos capítulos I e III, as
relações entre retórica e dialética e definido a retórica, Aristóteles, que censura
seus predecessores por haverem estudado principalmente as provas alheias à
arte, consagra os capítulos III a XIV, inclusive, ao estudo das provas técnicas;
às provas extratécnicas: leis, depoimentos das testemunhas, contratos,
declarações obtidas sob tortura, juramentos, atribuirá apenas o capítulo XV do
livro I. O livro II compreende duas grandes partes: nos capítulos I a XVII,
estuda Aristóteles as provas morais e subjetivas, para retomar, nos capítulos
XVII a XXVI, o exame das provas lógicas. O livro III é dedicado ao estudo da
forma”†. Se fôssemos resumir ainda mais este roteiro, chegaríamos à conclusão
de que estamos diante de um corpo de normas e regras que visa a saber o que é,
como se faz e qual o significado dos procedimentos persuasivos. É preciso
lembrar, porém, que Aristóteles não deseja confundir, como faziam muitos de
seus contemporâneos, retórica e persuasão.
A retórica tem, para Aristóteles, algo de ciência, ou seja, é um corpus com
determinado objeto e um método verificativo dos passos seguidos para se
† VOILQUIN, Jean e CAPELLE, Jean. Introdução. In: Aristóteles. Arte retórica e arte poética. Rio de Janeiro, Ouro,
s.d.p. p.71-2
produzir a persuasão. Assim sendo, caberia à retórica não assumir uma atitude
ética, dado que seu objetivo não é o de saber se algo é ou não verdadeiro, mas
sim analítica cabe a ela verificar quais os mecanismos utilizados para se fazer
algo ganhar a dimensão de verdade.
Ou, como afirma Aristóteles: “Assentemos que a Retórica é a faculdade
de ver teoricamente o que, em cada caso, pode ser capaz de gerar a persuasão.
Nenhuma outra arte possui esta função, porque as demais artes têm, sobre
objeto que lhes é próprio, a possibilidade de instruir e de persuadir; por
exemplo, a medicina, sobre o que interessa à saúde e à doença; a geometria,
sobre as variações das grandezas; a aritmética, sobre o número, e o mesmo
acontece com as outras artes e ciências. Mas a Retórica parece ser capaz de, por
assim dizer, no concernente a uma dada questão, descobrir o que é próprio para
persuadir.
Por isso, dizemos que ela não aplica suas regras a um
genêro próprio e determinado’’‡
A citação nos autoriza a deduzir o seguinte:
1. a retórica não é a persuasão;
2. a retórica pode revelar como se faz persuasão;
3. os discursos institucionais da medicina, da matemática, ou, da história, do
judiciário, da família etc.
4. a retórica é analítica (descobrir o que é próprio para persuadir);
5. a retórica é uma espécie de código dos códigos, está acima do
compromisso estritamente persuasivo (ela não aplica suas regras a um
gênero próprio e determinado), pois abarca todas as formas discursivas.
‡ Id., ibid., p.34.
Entende-se por que a retórica não poderia ser uma ética, pois ela não entra
no mérito daquilo que está sendo dito, mas, sim, no como aquilo que está
sendo dito o é de modo eficiente. Eficácia implica, nesse caso, domínio de
processo, de formas, instâncias, modos de argumentar.
Ao longo da Arte retórica, vai-nos sendo revelado quais são essas
regras gerais a serem aplicadas nos discursos persuasivos. Para tanto, um
dos mecanismos mais óbvios indicados por Aristóteles é aquele que fixa a
estrutura do texto em quatro instâncias seqüenciais e integradas: o exórdio,
a narração, as provas e a peroração. Antes de detalhar um pouco mais
essas fases do discurso, convém lembrar que, no fundo, a maneira como
aprendemos a escrever, o modo como muitos livros didáticos de redação
ensinam à criança os procedimentos a serem utilizados para a confecção de
textos, ainda seguem muito de perto a estrutura sugerida por Aristóteles na
Arte da retórica.
1. Exórdio. É o começo do discurso. Pode ser uma indicação do
assunto, um conselho,um elogio, uma censura, conforme o gênero do
discurso em causa. Para o nosso efeito consideremos o exórdio como a
introdução. Essa fase é importante porque visa a assegurar a fidelidade dos
ouvintes. Notem como age o padre num sermão. Normalmente ele diz:
“Caríssimos irmãos, hoje iremos falar sobre...”
2. Narração. É propriamente o assunto, onde os fatos são arrolados,
os eventos indicados. Segundo Aristóteles: “O que fica bem aqui não é
nem a rapidez, nem a concisão, mas a justa medida. Ora, a justa medida
consiste em dizer tudo quanto ilustra o assunto, ou prove que o fato se deu,
que constituiu um dano ou uma injustiça, numa palavra, que ele teve a
importância que lhe atribuímos”. É propriamente a argumentação.
3. Provas. Se o discurso haverá que ser persuasivo, é mister
comprovar aquilo que se está dizendo. Serão os elementos sustentadores
da argumentação. Esta fase é particularmente significativa no discurso
judiciário.
4. Peroração. É o epílogo, a conclusão. Pelo caráter finalístico, e
em se tratando de um texto persuasivo, está aqui a última oportunidade para
se assegurar a fidelidade do receptor, portanto, mais um importante momento
no interior do texto. A ela se referia Aristóteles: “A peroração compõe-se de
quatro partes: a primeira consiste em dispô-lo [o receptor] mal para com o
adversário; a segunda tem fim amplificar ou atenuar o que se disse; a terceira,
excitar as paixões no ouvinte; a quarta, proceder a uma recapitulação” .
Como se pode ver, Aristóteles estava, a moda de um cirurgião,
‘‘operando’’ o discurso no intuito de entender seu funcionamento.
Em cada uma dessas fases há ainda uma série de subdivisões, propostas de
encaminhamento dos argumentos, modos de tornar o discurso mais agradável
etc. Vê-se, portanto, que atribuir a Aristóteles o papel de um dos primeiros
sistematizadores da teoria do discurso é mais do que justo. No entanto, cabe
lembrar, a título de conclusão desta parte, que o autor de Arte retórica não foi,
como muitos insistem em dizer, o inventor da retórica. Ele apenas analisou os
discursos de seu tempo, verificou a existência de certos elementos estruturais,
comuns a todos eles, e a partir de então indicou a função e o espaço a serem
ocupados pelos estudos retóricos.
Verdade e verossimilhança
Ficou claro quando colocamos as relações entre retórica e persuasão que
não estava em causa saber até onde o ato de convencer se revestia de verdade.
Persuadir, antes de mais nada, é sinônimo de submeter, daí sua vertente
autoritária. Quem persuade leva o outro à aceitação de uma dada idéia. É aquele
irônico conselho que está embutido na própria etimologia da palavra: per +
suadere = aconselhar. Essa exortação possui um conteúdo que deseja ser
verdadeiro: alguém “aconselha” outra pessoa acerca da procedência daquilo que
esta sendo enunciado.
É possível que o persuasor não esteja trabalhando com uma verdade, mas
tão-somente com algo que se aproxime de uma certa verossimilhança ou
simplesmente a esteja manuseando.
Imagine a seguinte cena: Você esta na rua e vê um outdoor (esses
cartazes publicitários localizados em vias de larga circulação). Lá está o peru da
Sadia, todo avermelhado, brilhante, pedindo para ser comido. Ninguém onsidera
que o peru a ser degustado em casa seja aquele que lá está no cartaz. Porém, não
se objeta que aquilo que vemos é uma mentira. Ao contrário, sabemos que os
processos fotográficos operam verdadeiros milagres, acentuando detalhes que
redefinem a imagem do produto em caso. O que ocorre ao olharmos a
fotomontagem é ficarmos convencidos, pela própria imagem, acerca da
excelência do peru da Sadia. Ou seja, conquanto o que estejamos vendo não seja
verdadeiro, é verossímil, e nos convence enquanto lógica interna do próprio
cartaz.
Outro exemplo: É indiscutível que o super-homem não seja verdadeiro,
porém ele nos resta verossímil. Todos conhecem e aceitam as transformações
pelas quais passa o repórter do Planeta Diário, Clark Kent. Afinal, ele não é um
ser comum, é um extraterreno, filho de um longínquo e desaparecido planeta.
Assim sendo, a estória do super-homem está montada numa lógica que lhe é
própria, e que lhe dá sustentação contra os apressadinhos que desejam alegar ser
tudo aquilo uma grande mentira. Afinal, o que acontece quando o super-homem
se aproxima da kriptonita?...
Verossímil é, pois, aquilo que se constitui em verdade a partir de sua
própria lógica. Daí a necessidade, para se construir o “efeito de verdade”, da
existência de argumentos, provas, perorações, exórdios, conforme certas
proposições já formuladas por Aristóteles na Arte retórica. Persuadir não é
apenas sinônimo de enganar, mas também o resultado de certa organização do
discurso que o constitui como verdadeiro para o receptor.
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