domingo, 4 de outubro de 2015

NO DISCURSO DO LIVRO DIDÁTICO

Entre a enorme variável dos textos persuasivos, um nos interessa muito de
perto, quer por haver perseguido nossa formação escolar, quer pelas implicações
ideológicas que possui: o livro didático.
Esse tipo de obra costuma estar marcada por duas variáveis fundamentais: a
estereotipia e a idealização. Vale dizer, a estandardização dos comportamentos,
da ética, dos pressupostos culturais, da visão acerca da família, do papel do
Estado, para ficarmos em alguns dos assuntos mais comuns aos livros didáticos,
em especial aqueles dedicados ao primeiro grau.
Tais livros são organizados em torno de temas como religião, riqueza,
pobreza, amizade, felicidade etc. É um procedimento que visa a ensinar as
primeiras letras: alfabetização, leitura; particularmente, pretende formar os
“bons hábitos”, despertar a criança para “os valores mais caros à sociedade”, o
respeito às leis, às tradições, enfim, aquele corpo de preceitos ditados como
expressivos e determinantes para a vida futura do educando. São, portanto,
textos de “forja”, de artesanato da alma, de inculcação dos modelos que as
classes dominantes determinaram como padrão de conduta.
Sendo livros idealizados, costumam esvaziar dos conceitos ensinados os
traços da História, deixando-nos uma fórmula que parece ter vindo de nenhum
lugar e se dirige para lugar algum. Por estarem marcadas pelo estereótipo, tais
obras conseguem apresentar modelos que pouco ou nada têm a ver com a
realidade da maioria das crianças, refletindo quase sempre formas ligadas ao
padrão de vida de uma pretensa classe média. Podemos ver que no livro
didático, conquanto nascido para a “neutra” função de alfabetizar, de servir
como instrumental de leitura, transita ideologias, configurando uma atitude
nitidamente persuasiva.
Um dos temas mais caros ao livro didático é o da família. Vejamos como
ela tratada por Yolanda Marques:

NO DISCURSO RELIGIOSO

Uma das formações discursivas mais explicitamente persuasivas é a
religiosa: aqui o paroxismo autoritário chega a tal grau de requinte que o eu
enunciador não pode ser questionado, visto ou analisado; é ao mesmo tempo o
tudo e o nada. A voz de Deus plasmará todas as outras vozes, inclusive a
daquele que fala em seu nome: o pastor. Estamos diante de um discurso de
autoria sabida, porém não-determinada, visto que a fala do pastor se constrói
como verdade não sua, mas do outro, aquele que, por ser considerado
determinação de todas as coisas, engloba todas as falas do rebanho.
Nesse sentido, o discurso religioso realiza uma tarefa sul generis enquanto
mecanismo de comunicação, pois, se os demais discursos autoritáriospersuasivos
podem vir a revelar a voz do sujeito falante, nele resta apenas a
noção de dogma. Não deixa de ser uma situação curiosa estar diante da mais
visível forma de persuasão e do mais invisível eu persuasivo! Deus não fala,
dado ser uma realidade imaterial quem fala em seu nome não é dono do
discurso: o pastor e apenas veículo, porta-voz, no máximo um “interpretador” da
palavra do Senhor.
Num feliz achado, Eni Orlandi designa esse processo o nome de
“ilusão da reversibilidade”. Ou seja, enquanto no discurso dos homens se abre a
possibilidade de ocorrer uma reversão no processo comunicativo (emissores e
receptores podem interagir), no discurso religioso tal procedimento se torna
impossível. Interagir com quem? Com Deus? Sabemos, no entanto, que isso é
impossível, porém ficamos com a “ilusão” do reversível, dado que os
representantes de Deus na Terra parecem falar ele. Podemos interagir na melhor
das hipóteses, com entidades de segundo grau, os pastores, por exemplo, que,
não sendo donos da fala (eles só reproduzem ou interpretam), dão a impressão
de serem sujeitos do discurso.
A título de exemplificação, vejamos um dos mais conhecidos textos
religiosos, o Credo:
1 Creio em Deus Pai todo-poderoso,
2 criador do Céu e da Terra;
3 e em Jesus Cristo, seu único Filho, nosso Senhor;
4 que foi concebido pelo poder do Espírito Santo;
5 nasceu da Virgem Maria,
6 padeceu sob Pôncio Pilatos,
7 foi crucificado, morto e sepultado;
8 desceu à mansão dos mortos;
9 ressuscitou ao terceiro dia;
10 subiu aos Céus,
11 está sentado à direita de Deus Pai todo-poderoso,
12 donde há de vir a julgar os vivos e os mortos;
13 creio no Espírito Santo,
14 na santa Igreja católica,
15 na comunhão dos santos,
16 na remissão dos pecados,
17 na ressurreição da carne,
18 na vida eterna.
19 Amém.
1. O Credo, ou Profissão de Fé, nos coloca frente à relação entre o homem, a fé
e o dogma. O texto despren de-se de um plano meramente terreno, material
(humano, portanto), para uma dimensão de mistério e espiritualidade (do Senhor
Deus, da remissão, da salvação).
2. Tal passagem é matizada pela própria estrutura textual; o modo de organizar a
seqüência narrativa vai do eu oculto (creio) para vida eterna. Observando
melhor essa estrutura é possível identificar os passos do discurso clássicoaristotélico,
conforme já foi mostrado no primeiro capítulo deste livro. Dos
versos 1 a 4, encontra-se o exórdio; do 5 ao 12, a narração (com as provas); do
13 ao 19, a peroração (conclusão).
Exórdio
Aqui se apresenta a situação do eu, que sintaticamente está elidido, numa
posição de inferioridade e dependência perante o Senhor. Esse é o todopoderoso
capaz de criar um filho para ser o nosso Senhor. Senhor (seniore) nos
remete a uma realidade de posse feudal. medievalizante: é o amo, o dono, aquele
que domina e cujo poder é inquestionável. O exórdio deixa clara a falta de
igualdade entre o eu que crê (condição básica para a salvação) e Deus, cujo
único filho será o nosso Senhor.
A figura de linguagem que domina esta parte do discurso é a hipérbole. A
grandiosidade do todo- poderoso, capaz de criar céus e terras, só se compara a
pequenez do homem condenado a crer para se salvar. Por detrás da opacidade do
dogma e do mistério, lemos, através da hipérbole, a transparência de um
santificado jogo de poder e dominação.
Narração
A narração se encarrega de explicar e provar o nascimento, a vida e a morte
de Cristo. O longo acúmulo de verbos agiliza a leitura, dando ao texto um
incrível movimento interno. O que se coloca em primeiro plano é a morte e não
a vida, dado que esta é apenas o lugar para o exercício da capacidade de
provação do ser. A vida é a passagem, o locus purgativo, o teste para o
amadurecimento do espírito. A morte é o desfecho glorioso, circunstância
necessária para ganhar o reino do Céu, para se entregar à vida eterna. O Credo
ganha, aqui, dupla dimensão: dramática, visto contar a via crucis daquele que
69
veio para nos salvar; e punitiva porque Ele estará pronto para nos julgar. Diante
de tal ameaça, o mecanismo persuasivo do discurso se reforça, pois sobre as
nossas cabeças pende a espada de uma justiça cujo executor não nos permite
qualquer tipo de interpelação.
A figura dominante agora é a antítese. Há um jogo entre morrer e ressuscitar.
Colocando em termos do homem, seria a tensão entre os apelos para uma vida
que priorizasse o espírito, dado que tudo prioriza a matéria. Morrer é um meio
para viver a felicidade eterna. Graças à crença e à fé, a morte se transforma em
vida.
Peroração
A conclusão só poderia retomar o verbo crer, pois aí está a condição básica
para a salvação. É em torno desse núcleo verbal que tudo se organiza: ele é
expansão e síntese dos sentidos.
A conclusão serve para fixar a situação do homem e o que dele deseja
Deus. Para o Senhor, o homem está em falta, em queda, ou seja, o sujeito não é,
mas pode vir a ser, superando-se e conseguindo, através da fé, encontrar a
salvação. É possível caracterizar o discurso religioso como dogmático, dado essa
sua natureza de inquestionabilidade.
3. Há uma série de outros mecanismos que acentuam a persuasão no discurso
religioso:
• uso do modo imperativo, o que revela a idéia de coisa pronta, acabada;
• o vocativo subjacente (creio), que afirma o chamamento ao sujeito;
• a função emotiva (afinal eu devo acreditar, ter fé. O problema da salvação está
comigo, o Senhor é o exemplo a ser seguido);
• o uso de metáforas que acentuam o ciframento do discurso religioso: a mansão
dos mortos e o ressuscitamento de todos só criam um jogo simbólico acerca do
inusitado do dogma;
• uso intenso de parábolas e da paráfrase; de um lado, a evocação alegórica, e, de
outro, a presença do texto bíblico;
• uso de estereótipos e chavões que possuem a força daquilo que Umberto Eco
chama de sintagmas cristalizados: “Oh! Senhor”, “todo-poderoso”, “criador”,
“nosso Senhor” etc.

ESQUEMAS BÁSICOS

Em um livro clássico, Técnicas de Persusão, J.A.C. Brown* insiste em que a
propaganda, ou a publicidade, usa alguns esquemas básicos a fim de obter o
convencimento dos receptores.
1. O uso dos estereótipos. São esquemas, fórmulas já consagradas. Por exemplo,
um sujeito bem vestido, limpo, de boa aparência, remete a uma certa idéia de
honestidade, modelo a ser seguido. Ele tende a “convencer pela aparência”. Daí
o estereótipo do pobre, do rico. Fórmulas lingüísticas aparecem comumente no
* BROWN, J.A.C. Técnicas de Persuasão; Rio de Janeiro, Zahar, 19/1.
discurso persuasivo: o “preclaro senhor”, “o dever do filho é obedecer aos pais”,
“a família que reza unida permanece unida”, “sem ordem não haverá progresso”
etc. A grande característica do estereótipo é que ele impede qualquer
questionamento acerca do que está sendo enunciado, visto ser algo de domínio
público, uma “verdade” consagrada.
2. A substituição de nomes. Mudam-se termos com o intuito de influenciar
positiva ou negativamente certas situações. Assim, em vez de falar que o
capitalismo vai mal, o sujeito diz que é preciso reaquecer a livre iniciativa. Os
comunistas viram os vermelhos; o goleiro no campo de futebol, o frangueiro. Os
eufemismos se prestam muito bem como exemplificação deste caso.
3. Criação de inimigos. O discurso persuasivo costuma criar inimigos mais ou
menos imagináveis. A publicidade do Cepacol revela muito bem esta questão. O
sabão em pó se justifica contra algo: a sujeira. O político que deseja substituir
o outro alega ineficácia (combater tal inimigo implicará mudança de
administrador).
4. Apelo à autoridade. É o chamamento a alguém que valide o que está sendo
afirmado. As citações de especialistas em determinadas dissertações, o uso que a
publicidade faz do dentista, do médico, do atleta, para tornar “mais real” a
mensagem, são exemplos inequívocos.
5.Afirmação e repetição. São dois importantes esquemas usados pelo discurso
persuasivo. No primeiro caso, a certeza, o imperativo: a dúvida e a vacilação são
inimigas da persuasão. No segundo caso, repetir significa a possibilidade de
aceitação pela constância reiterativa. Goebbels, o teórico da propaganda nazista,
apregoava que uma mentira repetida muitas vezes era mais eficaz do que a
verdade dita uma única vez.

TEXTOS PERSUASIVOS

Situadas algumas das relações existentes entre retórica, ideologia e
persuasão, passaremos à análise (melhor seria dizer indicações) de alguns textos
que ajudem a concretizar um pouco mais as relações apontadas anteriormente.

Na publicidade

Um texto publicitário (e vamos aqui, na medida do possível, abstrair o
aspecto fotográfico que comumente acompanha as peças verbais) pode tender à
busca de uma originalidade instigante, como se verifica em certos anúncios da
Kalvin Klein, ou seguir uma direção oposta, repetindo esquemas estereotipados,
feitos em menor grau de originalidade a exemplo das campanhas de sabão em
pó.
Pode-se se produzir um anúncio aparentemente rompedor de certas
normas preestabelecidas, causando um forte impacto no receptor através de
mecanismos de “estranhamento”, “situações incômodas”, que levam, muitas
vezes, à indagação ou à pura indignação. Particularmente em um momento em
que se opera uma certa redemocratização da sociedade brasileira é possivel à
publicidade mexer com tabus como o do homossexualismo, do complexo de
Édipo, temas esses que provocam incômodo em boa parte dos receptores. Talvez
por isso mesmo consigam se firmar persuasivamente.
É evidente que ao lado dos anúncios mais ousados, até mesmo inovadores,
em alguns casos, convive uma imensa maré de lugares-comuns, banalidades
como a de colocar um atleta para vender vitamina, um aparente dentista para
divulgar certa pasta dental, um bem-sucedido empresário para recomendar
determinada corretora de valores. Não deixam de ter esses casos, igualmente,
força persuasiva.
O texto publicitário nasce na conjunção de vários fatores, quer psicosociais-
econômicos, quer do uso daquele enorme conjunto de efeitos retóricos
aos quais não faltam as figuras de linguagem, as técnicas argumentativas, os
raciocínios.
Por exemplo:
“Nove entre dez estrelas do cinema usam Lux”.
1. O slogan está formado de sete palavras gramaticais
(deixa-se de lado preposições ou conectivos). Um bom slogan tem entre quatro
e sete palavras gramaticais; logo, o nosso exemplo seria, tecnicamente, de “bom
tamanho”.
2. O raciocínio é o mais formal possível. Trata-se de um silogismo (forma
de raciocínio que passa por três fases: premissa maior, premissa menor e
conclusão):
Premissa maior: As mais belas mulheres (do cinema usam Lux.
Premissa menor: Você é (ou quer ser) uma bela mulher.
Conclusão: Você deve usar Lux (assim será tão bela como as formosas atrizes).
3. Uso de figuras de retórica. Existem duas figuras prioritárias: a
comparação e a hipérbole. Através da primeira se relaciona a inatingível estrela
à mulher comum; com a segunda se comete um exagero respeitável (nove entre
dez, usam Lux!).
1.O slogan se abre para duas realidades de forte pressão psicossocial:
• Exclusão. Ninguém deseja ser socialmente excluído. Estar em companhia da
única feia (a que não usa Lux) é umasituação um tanto desagradável.
•Símbolo. Vivemos em um mundo que não gosta do feio. Ainda que não
saibamos muito bem o que vem a ser tal categoria estética, a simples palavra já
nos atemoriza. Ser belo é o mesmo que estar estigmatizado pelo sucesso e pelo
triunfo. O convite à beleza soa como obrigação.
Passemos a um outro exemplo. A Merril Moura Brasil fez o relançamento
nacional do Cepacol. O produto que, originalmente, tinha licença para ser
vendido como produto farmacêutico, passou, posteriormente, a ser
comercializado também nos supermercados. O sucesso da campanha foi enorme
e as vendas do Cepacol aumentaram enormemente. Vale lembrar que a agência
responsável pela elaboração da nova imagem do produto, a Caio Domingues &
Associados, criou uma personagem, o Bond Boca, que
passou então a viver intensas aventuras na televisão e ocupar espaços em
outdoors e páginas de jornais e revistas de todo o País.
1 Configuração do tipo.
Queixo largo, boca grande, cara de mocinho recém- saido do banho, ágil e
sempre bem-sucedido com as mulhres.
2. Situações
A deitivesca figura é inspirada no célebre agente inglês criado Ian Fleming,
James Bond. Como são ambos filhos de uma mesma idéia, a de combater
inimigos, põem-se a campo: James ataca o Dr. No, os agentes soviéticos, vilões
de toda ordem, desejosos de destruir o império de sua majestade e a democracia
ocidental; Boca age contra o Gargantão, o Zé Cariado, o Bafo-
-Bafo, todos capazes de contaminar a estabilidade do sistema bucal.
3.Repertório.
O universo vocabular é muito simples, expressões fortes como combate e
inimigo ajudam no sentido de uma rápida fixação por parte dos receptores.
4.Figuras.
As figuras de sons: aliteração (repetição de consoantes) e assonância (repetição
de vogais) são aquelas mais significativas na campanha do Cepacol. O jogo
sonoro Bond/Boca cria um sentido eufônico que produz uma nova significação:
“o bom de boca”. O movimento repetitivo BONdBOca acentua a
“explosividade” do nome.
5.Contextualizações.
Os elementos arrolados acima convergem para certas conotações que se
encontram no eixo combate/triunfo. Ou seja, Bond Boca descobre uma nova
arma para vencer seus inimigos: Cepacol. O resultado da vitória é o aumento do
prestígio social do “agente bucal”, particularmente junto às mulheres. Como
todo vencedor leva as batatas, cabe a Bond Boca a ritualização dos que têm
prestígio. No entanto, há que se notar onde o foco da campanha está situado. O
que interessa não é propriamente o super-agente Bond Boca, senão a sua arma,
aquilo que o diferencia dos demais. Cepacol retira o nosso herói do lugarcomum.
O herói da estória passa do sujeito para o produto.
Desnecessário relembrar que a persuasão foi sendo construída na
encruzilhada entre os recursos lingüístico e a exploração das representações
socialmente incorporadaspelos indivíduos.
6.Tipificações.
O texto publicitário do Cepacol é persuasivo e autoritário, podendo ser tipificado
dentro daquelas categorias Formuladas por Courdesses: •
Distância. O sujeito falante é exclusivo, ainda que, nesse caso, seja possível
falar em dois sujeitos: aquele que fez o slogan e a própria personagem que diz o
texto. Não cabe aqui delongar o assunto, consideremos para os nossos efeitos
que o sujeito seja Bond Boca. Note, a partir disso, como criamos a impressão de
que o sujeito parece sobrelevar-se ao produto. Afinal, quem nos é simpático é o
Bond Boca. É claro também que isso é apenas uma outra estratégia para
assegurar a fixação da marca do Cepacol.
• Modalização. Presença de imperativos (combate), da paráfrase (a campanha é
decalcada no agente 007).
• Tensão. É um eu impositivo; o receptor não pode responder, está condenado a
ser ouvinte.
• Transparência. O enunciado é de fácil absorção, trata do tema de um modo
agradável a ponto de não provocar dúvidas quanto ao que está sendo enunciado.

UM ESQUEMA

Colocados os diversos tipos discursivos e o grau de persuasão neles
contidos, vejamos um esquema que ajuda na melhor compreensão do interior
das unidades textuais. Segundo o que nos propõe Courdesses *, a análise dos
discursos deve ser considerada em função de quatro elementos: distância,
modalização, tensão, transparência. Façamos agora a adequação desses
elementos ao discurso autoritário e persuasivo.
1. Distância (atitude do sujeito falante face ao seu enunciado). — O
sujeito falante é exclusivo. O enunciado está marcado por uma espécie de
“desaparecimento” dos referentes. A voz do enunciador é mais forte do que os
próprios elementos enunciados.
2.Modalização (o modo como o sujeito constrói o enunciado). O texto
autoritário, persuasivo, possui traços muito peculiares: o uso do imperativo, o
caráter parafrástico etc.
* CORDESSES. Blum et Thorez en mai 1936; analyses d’énoncés. Langue Française, 9. Este
esquema está tratado com maiores detalhes no já citado livro de Eni Orlandi.
3. Tensão (relação que se estabelece entre o emissor e o receptor). O
emissor domina a fala do receptor; não abre espaço para a existência de
respostas. É um eu impositivo, é a voz de quem comanda.
4. Transparência (maior ou menor grau de transparência, ou opacidade, do
enunciado). Tende a uma maior transparência, visto tornar-se um enunciado
mais facilmente compreensível pelo receptor. A mensagem é mais claramente
afirmada. Com isso, o signo tem seu grau de polissemia diminuído. A metáfora
não convive muito bem com a violência do convencimento autoritário.
No próximo capítulo serão analisados alguns textos em que esses elementos
serão retomados.

O DISCURSO AUTORITÁRIO

Essa é a formação discursiva por excelência persuasiva. Conquanto no
discurso polêmico também haja persuasão, é aqui que se instalam todas as
condições para o exercício de dominação pela palavra. Aquilo que se
convencionou chamar de processo de comunicação (eu-tu -eu praticamente
desaparece, visto que o tu se transforma em mero receptor, sem qualquer
possibilidade de interferir e modificar aquilo que está sendo dito. É um discurso
exclusivista, que não permite mediações ou ponderações. O signo se fecha e
irrompe a voz da “autoridade” sobre o assunto, aquele que irá ditar verdades
como num ritual entre a glória e a catequese.
O discurso autoritário lembra um circunlóquio: como se alguém falasse
para um auditório composto por ele mesmo. É na forma discursiva que o poder
mais escancara suas formas de dominação. Enquanto o discurso lúdico e o
polêmico tendem a um maior ou menor grau de polissemia, o autoritário fixa-se
num jogo parafrásico, ou seja, repete uma fala já sacramentada pela instituição:
o mundo do diálogo perdeu a guerra para o mundo do monólogo. A sociedade
moderna está fortemente impregnada desta marca autoritária do discurso. A
persuasão ganhou força de mito. Afinal, a propaganda é ou não é a alma do
negócio?
O discurso autoritário é encontrável, de forma mais ou menos mascarada, na
família: o pai que manda, sob a máscara do conselho; na igreja: o padre que
ameaça sob a guarda de Deus; no quartel: o grito que visa a preservar a ordem e
a hierarquia; na comunicação de massa: chamado publicitário que tem por
objetivo racionalizar o consumo; há, ainda, longos etecéteras a serem
percorridos.

O DISCURSO POLÊMICO

Cria um novo centramento na relação entre os inter- locutores,
aumentando o grau de persuasão. Agora, os conceitos enunciados são dirigidos
como num embate/debate. Há uma luta onde uma voz tenderá a derrotar a outra.
Nesse caso, o grau de polissemia tende a baixar, dado existir o desejo do eu em
dominar o referente. O discurso polêmico possui um certo grau de instigação,
visto apresentar argumentos que podem ser contestados. Digamos que o
enunciador opera a uma abertura sob controle. O importante é que: “...os
participantes não se expõem, mas ao contrário procuram dominar o seu
referente, dando-lhe uma direção, indicando perspectivas particularizantes” *
* ORLANDI, Eni. A linguagem e seu funcionamento. São Paulo, Brasiliense, 1983. p.10.
O discurso polêmico pode ser encontrado em situações muito variadas:
uma discussão entre amigos, uma defesa de tese, um juízo sobre urna questão
nacional, um editorial jornalístico ou uma aula.

MODALIDADES DISCURSIVAS

Procuramos no capítulo anterior mostrar a existência de relações entre a
estrutura ideológica do signo, o discurso persuasivo e as instituições. Cabe agora
situar um pouco melhor outros tipos discursivos a fim de que se possam
perceber novos detalhes que contribuem para configurar as particularidades
organizadoras do modo persuasivo.
Em um livro muito instigante, e do qual retiramos algumas idéias para
serem discutidas neste capítulo, A linguagem e seu funcionamento, Eni Orlandi
apresenta três grandes modos organizacionais do discurso: o polêmico, o lúdico
e o autoritário. Antes de passar à verificação de cada tipo, convém lembrar que
não estamos diante de categorias autônomas, mas de dominância. Ou seja, não
são formas puras e sim híbridas, existindo, porém, sempre, a preponderância de
uma sobre a outra. Assim sendo, o polêmico pode conter o lúdico, ou o
autoritário o polêmico etc. Ocorre que uma das formas estará sempre em
situação de dominância, sendo mais visível, portanto, caracterizadora.
O discurso lúdico
Consideremos que esta seria a forma mais aberta e “democrática” de
discurso. Residiria aqui um menor grau de persuasão, tendendo, em alguns
casos, ao quase desaparecimento do imperativo e da verdade única e acabada.
Lúdico significa jogo. Seria, pois, um tipo discursivo marcado pelo jogo de
interlocuções. Vale dizer, o movimento dialógico eu-tu-eu se dinamiza e passa a
conviver com signos mais abertos: há menos verdade de um, logo, menos desejo
de convencer. Nesse caso, o signo ganha uma dimensão múltipla, plural, de forte
polissemia: os sentidos se estilhaçam, expondo as riquezas de novos sentidos.
Os signos se abrem e revelam a poesia da descoberta; a aventura dos
significados passa a ter o sabor do encontro de outros significados.
O discurso lúdico compreenderia boa parte da produção artística, por exemplo, a
música, a literatura. É ver-se um texto como Alegria, alegria ou Tropicália, de
Caetano Veloso; um poema como Tecendo a manhã, de João Cabral de Melo
Neto; um romance como Grande sertão: veredas, de João Guimarães Rosa. A
própria descoberta da linguagem pela criança tem muito deste caráter de jogo
com as palavras: prazer e encantamento com os mistérios dos sons.

O DISCURSO AUTORIZADO

Em um artigo* muito instigante, Marilena Chauí desenvolveu o conceito
de discurso competente. Vamos examiná-lo mais de perto, visto sua utilidade no
sentido de ajudar a clarear pontos que foram levantados até agora.
Como é sabido, vivemos em uma sociedade que premia as competências,
no campo profissional, intelectual, emocional, esportivo etc. Ao limbo são
condenados aqueles que estão “do lado” da incompetência, porque não
conseguem subir na vida, ou são instáveis emocionalmente, desgarrados da
família, maus alunos, repetentes nos exames vestibulares, inseguros nas tomadas
de decisões. Se olharmos a questão por esse ângulo, veremos que o leque dos
* CHAUÍ, Marilena. O discurso competente. In: - Cultura e democracia; o discurso
competente e outras falas. São Paulo. Moderna, 1981.
fracassados é enorme; os vitoriosos cabem nos pequenos círculos gerenciais.
O parâmetro que irá atribuir medalhas honoríficas a uns e adjetivos pouco
nobres a outros é sempre o da eficiência. Mede-se o sujeito por aquilo que
produzirá, quer ao nível material - os negócios realizados, os imóveis
adquiridos, até as peças que fabrica -, quer ao nível espiritual - a agudeza com
que emite opiniões, os livros que escreve, a harmonia emocional que consegue
estabelecer, a capacidade com que convence auditórios inteiros.
O mito da eficiência costuma desconsiderar as naturezas e finalidades dos
bens produzidos. Deus e o diabo podem diferenciar-se na Terra do Sol, mas, no
que dz respeito à organização produtiva, eles se misturam. Não se pergunta para
que, para onde, para quem os bens se voltam. Alguém ganhou, alguém perdeu,
afirmaram-se individualidades, foram os seres brutalizados, são perguntas
improcedentes para o caso. Assim sendo, se, por exemplo, no interior do sistema
tecno-burocrático-militar, um pesquisador de física atômica consegue descobrir
uma partícula com maior poder de destruição do que as já existentes, então a ele
está assegurado o galhardão da competência, pouco importando a natureza ética
de tal descoberta: a glória do cientista virá, ainda que pela porta do inferno. Da
mesma forma, o policial agraciado com uma nova patente na polícia por haver
desvendado um caso obscuro. E verdade que ele fez uso de várias formas de
violência física e psicológica contra os suspeitos; mas o que está em causa aqui
não é perguntar acerca da justeza de uma forma de ação e sim reconhecer a
eficiência da polícia, conquanto se tenha comprometido os resquícios de
humanidade de torturados e torturadores.
É possível objetar que o biólogo que ajudou a encontrar a cura para o
câncer, contribuindo, portanto, para extirpar um mal que ataca a humanidade,
revelou, felizmente, eficácia e competência. O problema não está, obviamente,
no fato da eficácia e da competência, mas na sua natureza e no uso alienado que
dela se faz. Ao diluir tudo num plano meramente concorrencial e triunfalista, as
instituições impedem que se façam perguntas, que se indague das naturezas das
competências. E a quem cabe o papel de uniformizar interesses contraditórios,
escamoteando e mascarando as diferenças, impedindo que a sociedade
reconheça o profundo antagonismo existente entre a competência do físico que
pesquisou a nova particula atômica e a do biólogo que descobriu a cura do
câncer?
A ponte por onde transita a mistificação da competência é a palavra, é o
discurso burocrático-institucional com seu aparente ar de neutralidade e sua
validação assegurada pela cientificidade. Afinal, quem afirma é o doutor, o
padre, o professor, o economista, o cientista etc.! Isso ajuda a perpetuar as
relações de dominação entre os que falam a e pela instituição e os que são por
ela falados. Os segundos, sem a devida competência, ficam entregues a uma
espécie de marginalidade discursiva: um reino do silêncio, um mundo de vozes
que não são ouvidas.
O discurso autoritário e persuasivamente desejoso de aplainar as
diferenças, fazendo com que as verdades de uma instituição sejam expressão da
verdade de todos, e assim colocado por Marilena Chauí: “O discurso competente
confunde-se, pois, com a linguagem institucionalmente permitida ou autorizada,
isto é, com um discurso no qual os interlocutores já foram previamente
reconhecidos como tendo o direito de falar e ouvir...”*
E lembra a autora que o discurso burguês sofreu algumas transformações.
Antes o seu domínio passava pelo aspecto legislador, ético e pedagógico. Ou
seja, as idéias enunciadas eram capazes de normatizar valores e ensinar. Dizia-se
acerca do certo e do errado, do que era justo ou injusto, normal e anormal.
Existia, portanto, o desejo de se guiar e ensinar. Certas instituições como Pátria,
Família, Escola, serviam de referência básica às pessoas. O professor, o pai, o
governante, eram figuras legitimadoras de situações. Os textos, e no caso do
Brasil se pode ler tal visão através dos escritos pedagógicos de Olavo Bilac, de
Rui Barbosa, insistiam nas orações aos moços, nos decálogos do bom
comportamento, na ritualização da tradição e dos bons costumes.
Conquanto o discurso burguês não tenha perdido as particularidades
acima colocadas, ganhou nova cara: “Tornou-se discurso neutro da
cientificidade e do conhecimento”*
Se é neutro, ninguém o produz; se científico, ninguém o questiona. Quem
fala é o Ministério da Fazenda, através do seu corpo técnico; a Sociedade
Médica através de seus doutos membros; a grande corporação multinacional
através de seus executivos etc. Autorizado pelas instituições, o discurso se
impõe aos homens determinando-lhes uma série de condutas pessoais.
Os recursos retóricos se encarregam de dotar os discursos de mecanismos
persuasivos: o eufemismo, a hipérbole, os raciocínios tautológicos, a metáfora
cativante permitem que projetos de dominação de que muitas vezes não
suspeitamos, possam esconder-se por detrás dos inocentes signos verbais.
A palavra, o discurso e o poder se contemplam de modo narcisista; cabenos
tentar jogar uma pedra na lâmina de água.


DISCURSO DOMINANTE

Pelo que se leu até aqui é possível afirmar a seguinte idéia acerca do discurso
persuasivo: ele se dota de signos marcados pela superposição. São signos que,
colocados como expressões de “uma verdade”, querem fazer-se passar por
sinônimos de “toda a verdade”. Nessa medida, não é difícil depreender que o
discurso persuasivo se dota de recursos retóricos objetivando o fim último de
convencer ou alterar atitudes e comportamentos já estabelecidos. Isso nos
leva a deduzir que o discurso persuasivo é sempre expressão de um discurso
institucional. As instituições falam através dos signos fechados, monossêmicos,
dos discursos de convencimento. Tanto as instituições maiores — o judiciário, a
igreja, a escola, as forças militares, o executivo etc. — quanto as
microinstituições — a unidade familiar, a sala de aula, a sociedade amigos de
bairro etc. Assim, por exemplo, se o Código Civil determina que a monogamia é
o modo de organizar a família no Brasil, não nos é dado espaço para questionar
tal enunciado. As leis, a ética, são codificadas em signos tão persuasivos que a
monogamia passa a ser aceita como uma espécie de verdade absoluta. Caso
tenhamos convicções poligâmicas, todo o esforço das instituições –
representadas nas mais diversas falas, inclusive dos amigos, dos vizinhos, do
padre etc. — será no sentido de reverter esse comportamento. Nesse caso, a ação
persuasiva será no sentido de alterar uma atitude que afronta as instituições.
* ECO, Umberto. A estrutura....cit,p.85.
Mas, se ainda nos mantivermos firmes em nossa posição poligâmica,
afrontantando, portanto, a fala institucional, quebrando a normatividade da
organização familiar, então poderão ser esgotados os argumentos discursivos e
advirão outras foriiias repressivas, inclusive a física.
Os discursos que enunciamos em nosso cotidiano individual, conquanto
possam estar dotados de recursos composicionais, estilísticos, até muito
originais, não deixam de trazer a natureza sociabilizada do signo. Daí que os
signos enunciados por nós revelam as marcas das instituições de onde derivam.
Ao absorvermos os signos, incorporamos preceitos institucionais que nem
sempre se apresentam tão claramente a nós. É necessário, então, indagarmos um
pouco mais sobre a natureza do discurso persuasivo enquanto ponte para as falas
institucionais.

A TROCA DOS NOMES

Os debates na televisão, particularmente aqueles que incidem sobre o
tema econômico, têm sido pródigos em apresentar a figura do jovem empresário.
Esses costumam revelar um perfil de modernos administradores, educados,
cordiais, preocupados com as questões sociais, com o nível de renda dos
trabalhadores, com o lazer nas empresas que dirigem. Todo esse jorro de
elegância e bondade costuma, muitas vezes, revelar o avesso de uma vergonha.
Efetivamente, estão eles a dirigir grandes corporações, cujo fim
último é o lucro e a ampliação do capital. Tais temas, porém, são pesados
demais para serem compartilhados com o grande público, melhor que vivam a
tirar o sono apenas dos altos executivos!
É muito raro que tal empresário se empenhe numa aberta defesa do
capitalismo; palavra aliás da qual fogem como o diabo da cruz. As loas são
agora para o regime de livre-empresa como sendo aquele capaz de patrocinar
justiça social e justa distribuição da renda. Afinal, por que regime de livre41
empresa, e não capitalismo, modo de produção cuja amplitude e significado
engloba e transcende aquele?
O eufemismo não teria maior importância se deixasse de ser um jogo de
mistificação, nascido exatamente pela troca dos nomes. A alteração lexical não é
apenas parte de um natural processo sinonímico, mas o desejo de dourar uma
pílula cujo desgaste se tornou evidente.
A palavra capitalismo ficou muito feia, todos costumam associá-la à
exploração do homem, à ganância, a um tipo de relação onde, para relembrar
Machado de Assis, impera a filosofia do homem como lobo do próprio homem.
Livre-empresa, ao contrário, soa mais angelical, revelando uma forma de
organização não contaminada pelas desagradáveis e incômodas lembranças
sugeridas pelo capitalismo.
Mas, se não há diferença substancial entre um e outro termo, por que
trocá-los? Qual o jogo retórico que está por detrás do eufemismo? A resposta
nos remete a uma idéia segundo a qual uma das preocupações do discurso
persuasivo é o de provocar reações emocionais no receptor. Ou seja, no caso de
se deslocar a palavra contaminada (capitalismo), para a angelical (livreempresa),
assegura-se uma recontextualização do signo que passa agora a
produzir novas idéias, valores que não são mais associados às primárias formas
de exploração do capitalismo.
O grande dramaturgo alemão, Bertolt Brecht, dizia que uma das funções
de quem trabalhava com comunicação de massa - particularmente naquela
Alemanha que estava assistindo ao crescimento do nazismo — seria a de nomear
corretamente as coisas: nacional-socialismo não é o mesmo que nazismo etc.
Como se pode ver, são estreitas as relações entre signo, ideologia e construção
do discurso persuasivo. Nas palavras de Umberto Eco: “... determinado modo de
empregar a linguagem identificou-se com determinado modo de pensar a
sociedade” *

SIGNO e IDEOLOGIA

Signo e ideologia
A consciência da importância de estudar a natureza do signo para
reconhecer os tipos de discursos levou Mikhail Bakhtin a formular um dos mais
férteis pensamentos sobre o assunto.
Em síntese, fala-nos o teórico soviético em seu Marxismo e filosofia da
linguagem que é impensável afastarmos do estudo das ideologias o estudo dos
signos, e que a questão do signo se prolonga na questão das ideologias. Há entre
ambas uma relação de dependência tal que nos levaria a crer que só é possível o
estudo dos valores e idéias contidos nos discursos atentando para a natureza dos
signos que os constroem. Assim sendo, os recursos retóricos que entram na
organização de um texto (ver parte 1 deste livro) não seriam meros recursos
“formais”, jogos visando “embelezar” a frase; ao contrário, o modo de dispor o
signo, a escolha de um ou outro recurso lingüístico, reve laria múltiplos
comprometimentos de cunho ideológico. Mas, como ocorreria a relação entre
signo e ideologia? Um produto ideológico faz parte de uma realidade (natural ou
social) como todo corpo físico, instrumento de produção ou produto de
consumo; mas, ao contrário destes, ele também reflete e refrata uma outra
realidade que lhe é exterior. Tudo que é ideológico possui um significado e
remete a algo situado fora de si mesmo. Em outros termos, tudo que é ideológico
é um signo. “Sem signos não existe ideologia.”*
Vejamos o seguinte exemplo: Um martelo outra função não possui,
enquanto instrumento de trabalho, senão o de ser utilizado no processo
produtivo. Vale dizer, não extraímos dele nenhum outro significado a não ser o
de auxiliar-nos na afixação de pregos, na quebradura de pedras etc. Contudo, o
mesmo instrumento posto em outra situação, num contexto em que passe a
produzir idéias ou valores que estão situados fora de si mesmo, refletindo e
refratando outra realidade, será convertido em signo.
O martelo e a foice que existiam na bandeira da ex-URSS produziam a
idéia de que o Estado Soviético era construído pela aliança dos trabalhadores
urbanos com os rurais. Assim, a bandeira dizia que a união dos operários com os
camponeses tornava possível a existência da União das Repúblicas Socialistas
Soviéticas.
De instrumentos de trabalho que eram, o martelo e a foice transformaramse
em signos, isto é, ganharam dimensão ideológica. A ideologia transitou
através dos signos. A idéia final que a bandeira da ex-URSS desejava
persuasivamente produzir era a do Estado Soviético sendo determinado pelos
interesses dos trabalhadores. Note-se que os signos deram à bandeira a
possibilidade de afirmar que, sendo ela a expressão maior da nacionalidade e
estando nela as representações dos operários (o martelo) e dos camponeses (a
foice), tomam-se estas duas as forças sociais mais importantes da nação.
Há uma enorme série de exemplos de instrumentos, ou até mesmo
produtos de consumo, que perderam seu sentido inicial para se transformarem
em signos: ou seja, passaram a funcionar como veículos de transmissão de
* BAKTHIN, Mikhail. Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo, Hucitec. 1979. p.17.
ideologias. O pão e o vinho para os cristãos, a balança para a justiça, a maçã
para o pecado, a pomba para a paz etc. É possível, contudo, em qualquer desses
exemplos, saber até onde existe instrumento, ou produto de consumo, e onde
começa o signo; numa palavra, estamos diante da passagem do plano denotativo
para o plano conotativo. O pão, enquanto tal, denota um alimento; porém, no
contexto do rito religioso, passa a conotar o corpo de Cristo. Para aduzirmos
mais uma observação às considerações realizadas até aqui, convém lembrar que
o signo nasce e se desenvolve em contato com as organizações sociais. O signo
só pode ser pensado socialmente, contextualmente. Sendo assim, cria-se uma
relação estreita entre a formação da consciência individual e o universo dos
signos. Só podemos pensar a formação da consciência dentro de um prisma
concreto, derivado, do embate entre os signos.
Se as palavras, por exemplo, nascem neutras, mais ou menos como estão
em estado de dicionário, ao se contextualizarem, passam a expandir valores,
conceitos, pré-conceitos. Nós iremos viver e aprender em contato com outros
homens, mediados pelas palavras, que irão nos informar e formar. As palavras
serão por nós absorvidas, transformadas e reproduzidas, criando um circuito de
formação e reformulação de nossas consciências. Não podemos imaginar, como
querem certas filosofias, que a consciência seja uma abstração, uma projeção do
“mundo das idéias”. Ao contrário, pode-se verificar pelo que foi dito até aqui,
que a consciência se forma e se expressa concretamente, materialmente, através
do universo dos signos. Pode-se, portanto, “ler” a consciência dos homens
através do conjunto de signos que a expressa. As palavras, no contexto,
perdem sua neutralidade e passam a indicar aquilo a que chamamos
propriamente de ideologias. Numa síntese: o signo forma a consciência que por
seu turno se expressa ideologicamente.
Com essas observações, é fácil deduzir que o modo de conduzir o signo
será de vital importância para a compreensão dos modos de se produzir a
41
persuasão. Vejamos um exemplo:
A rodovia Castelo Branco está próxima.
A primeira impressão é a de que a função do nome Castelo Branco é
apenas o de indicar a existência de uma determinada rodovia. Se assim fosse,
estaríamos diante de um nível denotativo da linguagem cujo raio de ação
terminaria no plano meramente indicativo. Porém, se lembrarmos que aquela
rodovia poderia ter recebido um outro nome, visto que a possibilidade de
homenagear é quase infinita, teríamos que:
a) existiu uma escolha contextualizadora, ou seja, elegeu-se o nome de
Castelo Branco e não outro qualquer;
b) tal escolha foi pautada pela relação da personagem com certos fatos da
vida brasileira recente;
c) o homenageado representou (pelo menos dentro da ótica dos que
escolheram o nome da rodovia) um homem que realizou algum grande feito
nacional, no caso específico ter coordenado o golpe de 1964, portanto, merece
ser lembrado e louvado;
d) o nome de Castelo Branco (um grande homem para designar uma grande
rodovia, afinal foi a primeira auto-estrada brasileira!) colabora no sentido de
ajudar a perpetuar os valores ideológicos daqueles que depuseram o legítimo
governo de João Goulart. Castelo Branco seria a síntese de uma glorificação:
nele o encontro de um anônimo exército de golpistas.
Como se pode notar, até as placas de ruas acabam servindo como veículos
difusores de persuasão. Não fosse assim, episódios cômicos e trágicos deixariam
de ter sido associados às ruas e aos nomes que as designam. No primeiro caso, é
só recordarmos aquele exaltado “revolucionário” de 1964 que desejava trocar o
nome da rua Cuba, em São Paulo, visto suas nítidas conotações subversivas. No
segundo caso, os estudantes da Faculdade de Filosofia da USP, querendo mudar
o nome da rua onde funcionava a escola, a Maria Antônia, para Edson Luís
Souto, jovem estudante que havia sido morto no Rio de Janeiro pela repressão
política desencadeada no final de 1968.
É possível deduzir, portanto, que as placas podem ser indicativas, mas não
só, dado que conotam idéias e valores que estão embutidos em sua aparente
função exclusivamente designativa. Se, como foi afirmado anteriormente, a
palavra nasce neutra (em estado de dicionário), ao se contextualizar, ela passa a
expressar valores e idéias, transitando ideologias, cumprindo um amplo espectro
de funções persuasivas às quais não faltam a normatividade e o caráter
pedagógico.

ARBITRÁRIO, PORÉM NECESSÁRIO

As idéias que acabamos de expor estão incorporadas tradicionalmente aos
estudos do signo, representando um consenso entre os lingüistas. Sem ir contra
essa corrente, Emile Benveniste, um lingüista francês, avança um pouco mais as
discussões em torno da natureza e das funções do signo lingüístico. Para ele a
relação entre palavras e coisas não está apenas determinada pela arbitrariedade
(conquanto esta exista), mas também pela necessidade. Teríamos que, existindo
a parte do corpo humano formado pela cabeça, foi necessária a criação de algum
designativo para indicá-lo. Podemos então deduzir que as circunstâncias
históricas, o mundo concreto, os anseios espirituais, ao longo de seus processos
de desenvolvimento, foram criando necessidades de nomeação dos objetos. A
arbitrariedade eria urna espécie de segundo momento, precedida pela
necessidade. O homem precisa nomear e o faz arbitrariamente, criando o
símbolo a que chamamos de signo ou palavra.
Resta-nos dessas observações que o desejo de comunicar certas idéias - a
comunicação propriamente dita, a vontade de dizer coisas aos outros e o efetivo
ato de dizer, o movimento em direção à construção do texto e sua construção -
fica mediado por essa unidade menor que se chama signo. O modo de articulálo,
organizá-lo, poderá determinar as direções que o discurso irá tomar, inclusive
de seu maior ou menor grau de persuasão.

A NATUREZA DO SIGNO LINGUÍSTICO

Para se verificar a construção do discurso persuasivo, é necessário
reconhecer a organização e a natureza dos signos linguísticos. Afinal, é da interrelação
dos signos que se produz a frase, o período, o texto.
Há uma vasta bibliografia explicativa da estrutura e
das funções do signo lingüístico. Vamos fixar aqui algumas idéias que ajudem
na compreensão das articulações entre o signo e a persuasão.
É comum afirmar-se, segundo a orientação dada por Ferdinand de
Saussure, que todo signo possui dupla face: o significante e o significado. O
significante é o aspecto concreto do signo, é a sua realidade material, ou imagem
acústica. O que constitui o significante é o conjunto sonoro, fônico, que torna o
signo audível ou legível. O significado é o aspecto imaterial, conceitual do signo
e que nos remete a determinada representação mental evocada pelo significante.
Veja o que acontece com a palavra cabeça:
Ocorre que o significante e o significado são aspectos constitutivos de
uma mesma unidade. Quando enunciamos a palavra cabeça, o fazemos
relacionando conjunto sonoro e imagem mental. Dizemos, pois, que a palavra
cabeça possui uma significação.
Significante (Ste) + Significado (Sdo) = Signifcação(Sção).
Na frase “A cabeça é um órgão do corpo humano”, cabeça já nos produz
aqui uma significação. um sentido; ou se quisermos, nos representa mentalmente
aquilo que a forma lingüística está evocando. A significação é, portanto, uma
espécie de produto final da relação existente entre o significado e o significante.
Atentando para o que se disse acima, é possível realizar duas deduções:
1.) O signo é sempre arbitrário. Ou seja, não há relação direta entre o Ste e
o Sdo. Isso significa que nada existe na combinação dos sons que formam a
palavra cabeça (C + A + B + E + Ç + A) que una necessariamente tal palavra
com o correspondente significado cabeça.
O que rege as relações entre o Ste e o Sdo é a convencionalidade, daí ser
possível afirmar que não existe conjunção de obrigatoriedade entre o grupo
sonoro rosto e o seu correspondente físico, ou entre a palavra caneta e o objeto
caneta.
2.a) O signo é representativo, simbólico. Ou seja, coisas não se
confundem com palavras. As palavras não são as coisas que designam.
Um estudioso do assunto, S. Ullmann, assegura que os objetos só se relacionam
com os nomes através do sentido.
Assim sendo, podemos assegurar que um dos aspectos compositivos
básicos da palavra é o seu caráter simbólico, visto que as palavras estão sempre
em lugar das coisas e não nas coisas.

ALGUNS RACIOCÍNIOS

É possível visualizar no mundo clássico a existência de raciocínios
discursivos — já codificados pela retórica — que possuíam gradações
persuasivas. Vamos arrolar alguns desses raciocínios, procurando atualizá-los
através de exemplos mais próximos do nosso cotidiano.
O raciocínio apodítico (apodeiktkós) possuía o tom da verdade
inquestionável. O que se pode verificar aqui é o mais completo dirigismo das
idéias; a argumentação é realizada com tal grau de fechamento que não resta ao
receptor qualquer duvida quanto à verdade do emissor.
Exemplo: Zupavitin, a sopa que emagrece 1 quilo por dia.
Raciocínio implícito: Se você quer emagrecer, deve tomar Zupavitin.
O caráter imperativo do verbo torna indiscutível o enunciado. O receptor
fica impedido de esboçar qualquer questionamento. É um raciocínio fechado em
si mesmo que não dá margem a discussão.
Já o raciocínio dialético (não se deve confundir com a visão marxista do
termo) busca quebrar a inflexibilidade do raciocínio apodítico. Agora, aponta-se
para mais de uma conclusão possível. No entanto, o modo de reformular as
hipóteses acaba por indicar a conclusão mais aceitável. É um jogo de sutilezas
* ECO, Umberto. A estrutura ausente, São Paulo, Perspectiva, 1971. p.74.
que consiste em fazer parecer ao receptor existir uma abertura no interior do
discurso.
Exemplo: Você poderia comprar várias marcas de sabão em pó. Mas há
uma que lava mais branco.
O verbo no condicional cria a idéia de que se pode seguir múltiplos
caminhos para a compra do sabão em pó. Há várias marcas à sua disposição,
porém uma delas é destacada na conclusão. Ou seja, o enunciado já contém a
verdade final desejada pelo emissor.
A terceira grande categoria de raciocínio é o retórico, que era, portanto,
também o nome de um mecanismo de conduçao das idéias. Há certa semelhança
entre o dialético e o retórico, apenas no último caso não se busca um
convencimento racional, mas igualmente emotivo. O raciocínio retórico é capaz
de atuar junto a mentes e corações, num eficiente mecanismo de envolvimento
do receptor.
Exemplo: O candidato X deve merecer seu voto porque é um democrata;
realizará mais pelo bem comum, é amigo dos humildes, defensor dos
desfavorecidos.
Agora, já não se quer apenas o assentimento lógico, deseja-se também
trabalhar com os dados emocionais. É o tipo de discurso que caracteriza o
conselho paterno:“Olha, você pode ir à festa, porém, se ficasse em casa, nós
poderíamos...”
Algumas figuras
As figuras de retórica são importantes recursos para prender a atenção do
receptor naqueles argumentos arti culados pelo discurso.
As figuras, ou translações, como as definem certos autores, cumprem a
função de redefinir um determinado campo de informação, criando efeitos novos
e que sejam de atrair a atenção do receptor. São expressões figurativas que
conseguem quebrar a significação própria e esperada daquele campo de
palavras.
Entre as figuras mais usadas estão a metáfora e a metonímia, consideradas pelo
lingüista Roman Jakobson como espécie de matrizes presentes, ora com
dominância de uma, ora com a da outra, na imensa maioria dos textos.

RETÓRICA MODERNA

Nos último anos ocorreu uma verdadeira renovação nos estudos de
retórica, particularmente em sua ligação com a poética. Para tanto, os trabalhos
desenvolvidos por Jean Dubois e o grupo da Universidade de Liège tem sido
fundamental.
As recentes pesquisas acerca da retórica têm procurado tirar um pouco da
poeira acumulada pelo tempo, afastando-se daquela preocupação de a tudo dar
nomes, buscando muito mais colocar questões como as provenientes da teoria
das figuras. O inestimável valor dos dos conceitos formulados por Aristóteles
reencontra espaço para uma reflexão mais arejada e menos contaminada por
certas tendências que marcaram a história da retórica. Ou, como consideram
Dubois e seus companheiros: “Assim como a história política, a história das
idéias tem seus declínios e renascimentos, suas proscrições e reabilitações.
Quem afirmasse, dez anos atrás, que a Retórica iria tornar-se de novo uma
disciplina maior, teria causado riso. Dificilmente alguém se lembrava da
observação de Valéry sobre ‘o papel de primeira importância’ que
desempenham em poesia ‘os fenômenos retóricos’”*
Sem dúvida este novo papel está vinculado a dois pólos importantes: o do
estudo das figuras de linguagem e o das técnicas de argumentação.
Ou seja, reaparece aquele tópico que deseja estudar a organização
discursiva a fim de apreender os procedimentos que permitem ligar a adesão de
um ponto de vista àquelas idéias que lhes são apresentadas.
A questão aqui possui uma natureza e uma dimensão que não nos é
possível trilhar neste livro, porém a título de indicação convém adiantar que
estamos nos referindo tanto aos múltiplos processos de articulação dos
raciocínios textuais, como ainda à enorme gama de possibilidades criadas pelo
uso das figuras de linguagem. Mais adiante, faremos a exemplificação de alguns
raciocínios e figuras com o intuito de apontar tais procedimentos.
Para concluir, este tem, convem lembrar uma afirmação de Umberto Eco,
para quem a retórica, que era “quase entendida como fraude sutil, está sendo
mais e mais vista como uma técnica de raciocínio humano controlado pela
* DUBOIS, Jean et alli. Retórica geral. São Paulo, Cultrix. 1974. P 15.
dúvida e submetido a todos os condicionamentos históricos, psicológicos,
biológicos de qualquer ato humano”*

O VAZIO DA RETÓRICA

Com o passar dos séculos, a retórica foi tendo alteradas suas funções.
Daquela preocupação com as técnicas organizacionais do discurso e com a
persuasão, o que se irá assistir, particularmente no final do século XIX, e a uma
vinculação da retórica com a idéia de embelezamento do texto.
À retórica caberia fornecer recursos visando a produzir mecanismos de
expressão que tornassem o texto mais bonito. As figuras de linguagem e os
torneios de estilo ganharam faixa própria, encobrindo, muitas vezes, as
insuficiências das idéias. Por isso, ainda hoje, persiste um pouco a visão
negativa da retórica como sinônimo de enfeite do estilo e vazio das idéias. É
verdade que muitas organizações discursivas confirmam tal visão. Note-se, por
exemplo, certas petições de advogados, ou ainda, aqueles célebres discursos de
formatura, com os seus eternos “jovens de hoje que irão construir o país de
amanhã”, “o sofrimento dos pais para ver o triunfo dos filhos”. As cerimônias de
abertura dos bailes das debutantes não ficam muito atrás no desfile de clichês: “a
beleza feito menina”, “a formosura que ofusca as luzes do salão”, “a rosa que
desbrocha” etc. No Brasil, essa concepção “enfeitista” do discurso, na sua
romaria de lugares comuns, estereótipos, figuras de gosto duvidoso, verdadeiro
templo do Kitsch, difundiu-se com uma força capaz de produzir lágrimas nas
pasmas platéias.
Ao final do século XIX, a visão da retórica como verniz do estilo
encontrou terreno fértil entre os parnasianos. Veja um exemplo:
Invejo o ourives quando escrevo:
Imito o amor
Com que ele, em ouro, o alto relevo
Faz de uma flor.
Imito-o. E, pois, nem de Carrara
A pedra firo:
O alvo cristal, a pedra rara,
O ônix prefiro.
Por isso por servir-me,
Sobre o papel
A pena, como em prata firme.
Corre o cinzel.Corre;
desenha, enfeita a imagem,
A idéia veste
Cinge-lhe ao corpo a ampla roupagem
Azul-celeste.
Torce, aprimora, alteia, lima
A frase, e, enfim,
No verso de ouro engasta a rima
Como um rubim.
Assim procedo. Minha pena
Segue esta norma
Por te servir, Deusa Serena
Serena Forma!
O excerto acima, o célebre poema de Olavo Bilac, nos indica um pouco da
concepção segundo a qual o texto é, antes de mais nada, um trabalho de
artesanato verbal.A questão reside em encontrar o enfeite para a idéia, a rima
rara, a estrofe construída com a paciência do cinzelador. . Escrever passa ser,
principalmente, um ato de exercício verbal, um ritmo ao qual não devem faltar
os deuses a serem glorificados, nesse caso, a “Deusa Serena, Serena Forma”.

A RETÓRICA CLÁSSICA

Corno vimos, pela própria natureza do estado grego, era imperativo para
certas camadas sociais dominar as regras e normas da boa argumentação. O
exercício do poder, via palavra, era ao mesmo tempo uma ciência e uma arte,
louvado como instância de extrema sabedoria; portanto não causa estranheza
que surgissem aí as primeiras sistematizações e reflexões acerca da linguagem.
Os pensadores gregos de Sócrates a Platão escreveram sobre o assunto, porém é
com Aristóteles que o discurso será dissecado em sua estrutura e funcionamento.
O estagirita (384-322 a.C.) deu à luz um livro que permanece até hoje
como um dos manuais clássicos para quem deseja estudar certas questões
vinculadas aos processos compositivos dos textos: Arte retórica. A obra pode
* Dicionário das Ciências da Linguagem. Lisboa, D. Quixote, 1976. p.99
ser considerada uma espécie de síntese das visões que se acumulavam em torno
dos estudos retóricos, assim como um guia dos modos de se fazer o texto
persuasivo.
A Arte retórica é composta dos livros I, II, III, onde se podem ler, trazido
para a linguagem de hoje, elementos de gramática, lógica, filosofia da
linguagem e estilística, para ficarmos em alguns dos temas que nos dizem
respeito.
A título de nos aproximarmos um pouco mais da estrutura de Arte
retórica, convém observar o roteiro fornecido por Jean Voilquin e Jean Capelle:
“O livro I contém quinze capítulos. Após ter mostrado, nos capítulos I e III, as
relações entre retórica e dialética e definido a retórica, Aristóteles, que censura
seus predecessores por haverem estudado principalmente as provas alheias à
arte, consagra os capítulos III a XIV, inclusive, ao estudo das provas técnicas;
às provas extratécnicas: leis, depoimentos das testemunhas, contratos,
declarações obtidas sob tortura, juramentos, atribuirá apenas o capítulo XV do
livro I. O livro II compreende duas grandes partes: nos capítulos I a XVII,
estuda Aristóteles as provas morais e subjetivas, para retomar, nos capítulos
XVII a XXVI, o exame das provas lógicas. O livro III é dedicado ao estudo da
forma”†. Se fôssemos resumir ainda mais este roteiro, chegaríamos à conclusão
de que estamos diante de um corpo de normas e regras que visa a saber o que é,
como se faz e qual o significado dos procedimentos persuasivos. É preciso
lembrar, porém, que Aristóteles não deseja confundir, como faziam muitos de
seus contemporâneos, retórica e persuasão.
A retórica tem, para Aristóteles, algo de ciência, ou seja, é um corpus com
determinado objeto e um método verificativo dos passos seguidos para se
† VOILQUIN, Jean e CAPELLE, Jean. Introdução. In: Aristóteles. Arte retórica e arte poética. Rio de Janeiro, Ouro,
s.d.p. p.71-2
produzir a persuasão. Assim sendo, caberia à retórica não assumir uma atitude
ética, dado que seu objetivo não é o de saber se algo é ou não verdadeiro, mas
sim analítica cabe a ela verificar quais os mecanismos utilizados para se fazer
algo ganhar a dimensão de verdade.
Ou, como afirma Aristóteles: “Assentemos que a Retórica é a faculdade
de ver teoricamente o que, em cada caso, pode ser capaz de gerar a persuasão.
Nenhuma outra arte possui esta função, porque as demais artes têm, sobre
objeto que lhes é próprio, a possibilidade de instruir e de persuadir; por
exemplo, a medicina, sobre o que interessa à saúde e à doença; a geometria,
sobre as variações das grandezas; a aritmética, sobre o número, e o mesmo
acontece com as outras artes e ciências. Mas a Retórica parece ser capaz de, por
assim dizer, no concernente a uma dada questão, descobrir o que é próprio para
persuadir.
Por isso, dizemos que ela não aplica suas regras a um
genêro próprio e determinado’’‡
A citação nos autoriza a deduzir o seguinte:
1. a retórica não é a persuasão;
2. a retórica pode revelar como se faz persuasão;
3. os discursos institucionais da medicina, da matemática, ou, da história, do
judiciário, da família etc.
4. a retórica é analítica (descobrir o que é próprio para persuadir);
5. a retórica é uma espécie de código dos códigos, está acima do
compromisso estritamente persuasivo (ela não aplica suas regras a um
gênero próprio e determinado), pois abarca todas as formas discursivas.
‡ Id., ibid., p.34.
Entende-se por que a retórica não poderia ser uma ética, pois ela não entra
no mérito daquilo que está sendo dito, mas, sim, no como aquilo que está
sendo dito o é de modo eficiente. Eficácia implica, nesse caso, domínio de
processo, de formas, instâncias, modos de argumentar.
Ao longo da Arte retórica, vai-nos sendo revelado quais são essas
regras gerais a serem aplicadas nos discursos persuasivos. Para tanto, um
dos mecanismos mais óbvios indicados por Aristóteles é aquele que fixa a
estrutura do texto em quatro instâncias seqüenciais e integradas: o exórdio,
a narração, as provas e a peroração. Antes de detalhar um pouco mais
essas fases do discurso, convém lembrar que, no fundo, a maneira como
aprendemos a escrever, o modo como muitos livros didáticos de redação
ensinam à criança os procedimentos a serem utilizados para a confecção de
textos, ainda seguem muito de perto a estrutura sugerida por Aristóteles na
Arte da retórica.
1. Exórdio. É o começo do discurso. Pode ser uma indicação do
assunto, um conselho,um elogio, uma censura, conforme o gênero do
discurso em causa. Para o nosso efeito consideremos o exórdio como a
introdução. Essa fase é importante porque visa a assegurar a fidelidade dos
ouvintes. Notem como age o padre num sermão. Normalmente ele diz:
“Caríssimos irmãos, hoje iremos falar sobre...”
2. Narração. É propriamente o assunto, onde os fatos são arrolados,
os eventos indicados. Segundo Aristóteles: “O que fica bem aqui não é
nem a rapidez, nem a concisão, mas a justa medida. Ora, a justa medida
consiste em dizer tudo quanto ilustra o assunto, ou prove que o fato se deu,
que constituiu um dano ou uma injustiça, numa palavra, que ele teve a
importância que lhe atribuímos”. É propriamente a argumentação.
3. Provas. Se o discurso haverá que ser persuasivo, é mister
comprovar aquilo que se está dizendo. Serão os elementos sustentadores
da argumentação. Esta fase é particularmente significativa no discurso
judiciário.
4. Peroração. É o epílogo, a conclusão. Pelo caráter finalístico, e
em se tratando de um texto persuasivo, está aqui a última oportunidade para
se assegurar a fidelidade do receptor, portanto, mais um importante momento
no interior do texto. A ela se referia Aristóteles: “A peroração compõe-se de
quatro partes: a primeira consiste em dispô-lo [o receptor] mal para com o
adversário; a segunda tem fim amplificar ou atenuar o que se disse; a terceira,
excitar as paixões no ouvinte; a quarta, proceder a uma recapitulação” .
Como se pode ver, Aristóteles estava, a moda de um cirurgião,
‘‘operando’’ o discurso no intuito de entender seu funcionamento.
Em cada uma dessas fases há ainda uma série de subdivisões, propostas de
encaminhamento dos argumentos, modos de tornar o discurso mais agradável
etc. Vê-se, portanto, que atribuir a Aristóteles o papel de um dos primeiros
sistematizadores da teoria do discurso é mais do que justo. No entanto, cabe
lembrar, a título de conclusão desta parte, que o autor de Arte retórica não foi,
como muitos insistem em dizer, o inventor da retórica. Ele apenas analisou os
discursos de seu tempo, verificou a existência de certos elementos estruturais,
comuns a todos eles, e a partir de então indicou a função e o espaço a serem
ocupados pelos estudos retóricos.
Verdade e verossimilhança
Ficou claro quando colocamos as relações entre retórica e persuasão que
não estava em causa saber até onde o ato de convencer se revestia de verdade.
Persuadir, antes de mais nada, é sinônimo de submeter, daí sua vertente
autoritária. Quem persuade leva o outro à aceitação de uma dada idéia. É aquele
irônico conselho que está embutido na própria etimologia da palavra: per +
suadere = aconselhar. Essa exortação possui um conteúdo que deseja ser
verdadeiro: alguém “aconselha” outra pessoa acerca da procedência daquilo que
esta sendo enunciado.
É possível que o persuasor não esteja trabalhando com uma verdade, mas
tão-somente com algo que se aproxime de uma certa verossimilhança ou
simplesmente a esteja manuseando.
Imagine a seguinte cena: Você esta na rua e vê um outdoor (esses
cartazes publicitários localizados em vias de larga circulação). Lá está o peru da
Sadia, todo avermelhado, brilhante, pedindo para ser comido. Ninguém onsidera
que o peru a ser degustado em casa seja aquele que lá está no cartaz. Porém, não
se objeta que aquilo que vemos é uma mentira. Ao contrário, sabemos que os
processos fotográficos operam verdadeiros milagres, acentuando detalhes que
redefinem a imagem do produto em caso. O que ocorre ao olharmos a
fotomontagem é ficarmos convencidos, pela própria imagem, acerca da
excelência do peru da Sadia. Ou seja, conquanto o que estejamos vendo não seja
verdadeiro, é verossímil, e nos convence enquanto lógica interna do próprio
cartaz.
Outro exemplo: É indiscutível que o super-homem não seja verdadeiro,
porém ele nos resta verossímil. Todos conhecem e aceitam as transformações
pelas quais passa o repórter do Planeta Diário, Clark Kent. Afinal, ele não é um
ser comum, é um extraterreno, filho de um longínquo e desaparecido planeta.
Assim sendo, a estória do super-homem está montada numa lógica que lhe é
própria, e que lhe dá sustentação contra os apressadinhos que desejam alegar ser
tudo aquilo uma grande mentira. Afinal, o que acontece quando o super-homem
se aproxima da kriptonita?...
Verossímil é, pois, aquilo que se constitui em verdade a partir de sua
própria lógica. Daí a necessidade, para se construir o “efeito de verdade”, da
existência de argumentos, provas, perorações, exórdios, conforme certas
proposições já formuladas por Aristóteles na Arte retórica. Persuadir não é
apenas sinônimo de enganar, mas também o resultado de certa organização do
discurso que o constitui como verdadeiro para o receptor.

A TRADIÇÃO RETÓRICA

Falar em persuasão implica, de algum modo, retomar uma certa tradição
do discurso clássico, na qual podem ser lidas muitas das formulações que
marcaram posteriormente os estudos de linguagem. Essa recuperação do
espaço cultural e lingüístico do mundo clássico é necessária, visto que a
preocupação com o domínio da expressão verbal nasceu entre os gregos. E não
poderia ser diferente, pois, praticando um certo conceito de democracia, e tendo
de exporem publicamente suas idéias, ao homem grego cabia manejar com
habilidade as formas de argumentação. Daí toda larga tradição dos tribunos, dos
sofistas, que iam às praças públicas, aos tribunais, aos foros, intentando inflamar
multidões, alterar pontos de vista, mudar conceitos pré-formados. Demóstenes,
Ouintiliano, Górgias, foram alguns desses nomes que ficaram célebres pela
habilidade com que encaminhavam suas lógicas argumentativas. Não é, pois,
estranho que a Grécia clássica tivesse levado a graus de sutileza a preocupação
com a estruturação do discurso. As escolas criaram, inclusive, disciplinas que
melhor ensinassem as artes de domínio da palavra: a eloqüência, a gramática, a
retórica, atestam algumas das evidências do conjunto de preocupações que
marcaram a relação dos gregos com o discurso.
Ademais, o problema não era apenas o de falar, mas fazê-lo de modo
convincente e elegante, unindo arte e espírito, bem ao gosto da cultura clássica.
A disciplina que cuidava especialmente de buscar tal harmonia era a retórica.
Segundo Oswald Ducrot e Tzvetan Todorov: “O aparecimento da retórica como
disciplina específica é o primeiro testemunho, na tradição ocidental, duma
reflexão sobre a linguagem. Começa-se a estudar a linguagem não enquanto
‘língua’, mas enquanto ‘discurso’” *. Ou seja, cabe à retórica mostrar o modo de
constituir as palavras visando a convencer o receptor acerca de dada verdade.
A retórica foi, porém, transformando-se em mero sinônimo de recursos
embelezadores do discurso, ganhando até um certo tom pejorativo. Um pouco
desta postura se deve a certas visões da retórica, como as desenvolvidas no
século XVIII e XIX, para quem já não se tratava mais de uma questão de
método compositivo, mas sim de buscar o melhor enfeite, a palavra mais bela, a
figura inusual, a expressão inusitada, à moda do ideário estético dos parnasianos.
Em nossos dias os estudos retóricos passaram a receber novas abordagens,
em especial no que diz respeito às figuras de linguagem e suas funções, como se
pode ler nas formulações do grupo de Jean Dubois, da escola de Liège.

INFORMAÇÃO SEM PERSUAÇÃO?

“Mas devemos defender-nos de toda
palavra, toda linguagem que nos desfigure o mundo, que nos separe das
criaturas humanas, que nos afaste das raízes da vida.”
                                                           Érico Veríssimo


A revista americana Newsweek se fazia anunciar, em cartazes
publicitários afixados em alguns pontos de vendas, como aquela que não
persuadia, mas informava. Afora querer convencer-nos acerca do
conhecido mito da neutralidade jornalística, a revista parecia desejosa de
exorcizar (-se?) um demônio que vincula à persuasão alguns qualificativos
como fraude, engodo, mentira. Deixar claro, nesse caso, uma atitude
antipersuasiva objetiva fixar uma imagem de respeitabilidade /
credibilidade junto aos leitores. Supondo-se que a revista espelhasse a
mais completa lisura, o mais profundo aferramento aos princípios de uma
informação incontaminada pela presença de interesses vários, ainda assim
estaria ela isenta do ato persuasivo? A resposta é não. Afinal, o próprio
slogan da revista, aquela que não persuade, já nos remete à idéia de que
estamos diante de um veículo marcado pela correção e honestidade,
diferente de outros, e no qual o leitor pode confiar plenamente. De certo
modo, o ponto de vista do receptor é dirigido por um emissor que, mais ou
menos oculto, e falando quase impessoalmente, constrói sob a sutil forma
da negação uma afirmação cujo propósito é o de persuadir alguém acerca
da verdade de outrem. Isso nos revela a existência de graus de persuasão:
alguns mais ou menos visíveis, outros mais ou menos mascarados.
Generalizando um pouco a questão, é possível afirmar que o elemento
persuasivo está colado ao discurso como a pele ao corpo. É muito difícil
rastrearmos organizações discursivas que escapem à persuasão; talvez a
arte, algumas manifestações literárias, jogos verbais, um ou outro texto
marcado pelo elemento lúdico.
O que pretendemos neste livro é levantar algumas questões
sugeridas pelo discurso persuasivo. Daí buscarmos situar um pouco da
história da persuasão, assim como revelar certos mecanismos persuasivos
no interior do discurso verbal.
Cabe lembrar que, pela natureza introdutória deste livro, alguns pontos
passíveis de aprofundamento ficarão como sugestão. Acreditamos, porém,
que as idéias aqui elaboradas ajudarão a compreender até onde certas
técnicas de convencimento verbal se articulam, particularmente nos
discursos institucionais, com aqueles elementos de justificaçao ideológica
próprios do discurso persuasivo. Estaremos satisfeitos se este livro ajudar
a especular até onde o reconhecimento das formas persuasivas permite
aventar a possibilidade de encontrar discursos de outra ordem. Se
existirem, evidentemente.

sábado, 29 de agosto de 2015

O que é Persuadir ?

Persuasão
substantivo feminino
  1. 1.
    ato ou efeito de persuadir(-se).
  2. 2.
    certeza fortemente estabelecida; convicção.


Você pode até não perceber, mas quando nos comunicamos, seja oralmente, seja na modalidade escrita, nosso discurso está permeado por uma função da linguagem específica, responsável por denotar nossas verdadeiras intenções. Quem sabe exatamente aonde quer chegar com um determinado tipo de discurso também conhece o funcionamento adequado dos elementos da comunicação.
São vários os discursos aos quais somos expostos diariamente, entre eles, o eficiente discurso empregado pela publicidade. Quando sentamos em frente à televisão, já estamos, mesmo que inconscientemente, expostos aos diversos anúncios e suas sofisticadas técnicas de persuasão. Disso vive a publicidade, e esta é sua principal função: convencer o consumidor de que determinado produto é indispensável, ainda que sem ele possamos viver muito bem. Somos, o tempo todo, convencidos e persuadidos não só pela publicidade, mas também pelos discursos políticos, religiosos e outros tipos de textos que interferem diretamente em nossas vontades. Nem sempre tomamos decisões sozinhos, muitas vezes fatores externos são importantes para uma palavra final sobre algum assunto.
É importante observar que a linguagem e a persuasão são elementos que podem estabelecer uma conexão indissociável. Quando somos persuadidos por um tipo de discurso, não estamos sendo apenas convencidos sobre alguma coisa, estamos transformando e substituindo valores extremamente subjetivos. A persuasão extrapola a ideia de convencimento, pois é um ato associado a um discurso ideológico, subjetivo e temporal. São argumentos capazes de modificar nossos pensamentos e ações, e não apenas um artifício criado para nos fazer comprar algo ou alguma ideia.

A persuasão está presente principalmente nos discursos políticos, religiosos e na publicidade
Não pense que a construção da linguagem persuasiva ocorre ao acaso. Existem alguns recursos que contribuem para a eficácia na emissão da mensagem, tais como:
  • Emprego de figuras de linguagem como comparações, analogias, hipérboles e eufemismos;
  • Uso do modo imperativo nos verbos;
  • Alusão ao mundo conhecido do público-alvo em uma tentativa de aproximar a linguagem ao destinatário da mensagem;
  • Emprego de trocadilhos e jogos de palavras.

As campanhas institucionais de vacinação são exemplos de emprego da linguagem persuasiva.
A persuasão está comumente associada aos chamados “argumentos de força” (tipo de argumento que não permite o diálogo com o interlocutor), mas em algumas situações, usar as técnicas de persuasão pode ter uma finalidade nobre: é o que acontece com a publicidade institucional, aquela que não tem por objetivo aumentar os lucros de uma empresa, mas sim divulgar uma mensagem de cunho social, cultural ou cívico que estimule uma atitude mais reflexiva e responsável na população.
Fique atento: linguagem e persuasão podem ser uma dupla dinâmica, interferindo diretamente em suas escolhas. Por isso, é fundamental que saibamos o poder das palavras e dos diversos discursos que acessamos e ouvimos em nosso cotidiano.
Fonte:http://www.portugues.com.br/redacao/linguagem-persuasao.html